quinta-feira, 27 de março de 2014

Quando a "boa" intenção pode perpetuar opressões

Está rodando pelo mundo livre da internet um ensaio fotográfico realizado pela russa Irina Popova na casa e no cotidiano da família de Lilya, em São Petersburgo. Ela teria encontrado a mulher embriagada pelas ruas empurrando a filha Asfina em um carrinho de bebê. Não tive acesso ao ensaio completo, que teria virado um livro chamado "Another Family", apenas a uma seleção de fotos que está sendo disseminada pela internet.

O que parece ser a intenção de Popova é mostrar os dilemas e sofrimentos de uma pequena garotinha que vive em meio a pessoas viciadas - mesmo que ela não deixe claro de que vícios estamos falando. Em primeiro lugar, quando nos referimos a usuários de drogas que não as usam por lazer e sim, por dependência, chamamos de dependentes químicos, e não de viciados, uma palavra historicamente pejorativa. As palavras têm poder e a nomenclatura utilizada pra classificar os personagens que ela retrata já reflete a visão de mundo dela sobre o assunto.

O estigma da nudez


Sem compreender a que tipo de droga a fotógrafa se refere, fica difícil fazer qualquer interpretação acerca do cotidiano da família e da criança. Mas, atendo-se à análise das fotos, o ensaio pode soar um tanto estigmatizante. A foto que mais me chocou é uma em que o casal está deitado e o homem está nu com a criança por perto, observando. Então eu penso: em uma sociedade onde, por um lado, o corpo humano despido é cada vez mais erotizado e muitos, por outro lado, tentam naturalizar a nudez, em que medida essa foto contribui para o estigma daqueles que buscam viver à vontade e mostrar um corpo natural ao seu filho, sobrinho ou enteado? Qual a diferença entre as fotos abaixo? Será que a diferença está mais na maneira como os adultos se despem na frente das crianças ou na maneira como essas condutas são retratadas pela fotógrafa? Ou nas técnicas de embelezamento ou "poética" do momento captado? Há alguma diferença entre a luz utilizada na foto criticada e nas outras, consideradas bonitas e poéticas?

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Foto de Anastasia Chernyavsky com os filhos.

Foto de Andrea Lima para o projeto "Nu cotidiano"

O estigma do "diferente"


Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Maria Joana e o pai, brincando no chão.
Ele tem um piercing na língua e usa dreadlocks.
Se você tem tatuagens, muitos dizem que você é "diferente". Se você usa o cabelo colorido ou rastafari, quantos dizem que você é "diferente"? Se você tem um hábito alimentar vegetariano, que é algo tão simples, comum e compreensível, as pessoas já dizem que você é "diferente". O que é ser "diferente"? A princípio, aquilo que não é igual. Mais ainda, aquilo que foge aos padrões convencionais do que "deve ser" uma pessoa ou uma família em determinada cultura. Ao chamar o livro de "Another Family" - "Outra família", na tradução literal -, a fotógrafa já está deixando claro o seu próprio julgamento acerca de uma família que ela considera fora dos padrões "normais" de uma família.

Será que uma família que usa drogas é tão "diferente" assim? De que família estamos falando? Essa família é "diferente" em relação a que tipo de família? Será que não conhecemos nenhuma família aparentemente "normal" na qual a mãe ou o pai usa álcool ou rivotril, ou até mesmo maconha e cocaína? Isso lhes retira a condição de ser uma família?

A única foto em que é possível ver claramente alguma droga, vemos um cigarro, legalizado e vendido livremente em farmácias, padarias e supermercados.

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
 E mais, nas fotos vemos claramente pessoas tatuadas, com cabelos coloridos e estilos considerados "diferentes". Em que medida esse ensaio contribui também para a estigmatização das pessoas consideradas "diferentes" por seguirem outros estilos de vida? Na foto abaixo, vemos claramente uma parede pixada e uma mãe com cabelos coloridos, tatuada e com roupas consideradas "diferentes" do que uma mãe "deveria usar" segundo a nossa cultura. O último aspecto que vemos é um gesto de carinho que ocorre na foto.

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Por fim, em uma das fotos o casal troca carinhos enquanto a menina olha. Isso é tão estranho assim? É absurdo um casal trocar carinho na frente da criança? Ou alguém consegue ver alguma conotação sexual na imagem abaixo?

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
E mesmo as fotos onde não há nada de aparentemente "cruel" ou "degradante", a fotógrafa optou por utilizar uma luz baixa, que claramente perpetua o estigma do "sujo", "obscuro", bem característico dos lugares que usuários de drogas frequentam - no imaginário de muita gente, que isso fique claro.

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Além do mais, uma foto claramente recortada busca mostrar a mãe voltando de uma festa de madrugada empurrando o carrinho da filha. Será que não existem casais que voltam de madrugada de festas na casa dos amigos com os filhos nos braços? Quantos de nós voltam de madrugada com a criança dormindo no carro e depois levam no braço até a cama? Qual a diferença das fotos abaixo?

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Eu e minha filha numa festa de Reveillon,
na porta da casa de uma amiga. Estamos na calçada.

Embora a foto esteja desfocada, vê-se claramente a mesa cheia de bebidas,
os amigos ao redor e eu e minha filha lá no canto.
Em outra foto, vê-se a menina pendurada na janela correndo o risco de cair, mesmo que a janela contenha uma rede de segurança. Supostamente, a intenção da fotógrafa é mostrar a desatenção dos pais viciados quanto à criança. Será que desatenção e perigos são exclusividade de "pais viciados" ou nenhum de nós, no exercício de pai e mãe, teve um momento de distração que expôs a criança a um risco? Será que nenhum de nossos filhos têm marcas, cicatrizes e feridas de momentos nossos de distração em que eles se arriscaram a ir descobrir mais longe do que o usual? Qual a diferença entre as fotos abaixo?

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"




A diferença é que as últimas são compartilhas pela internet com risos.


É possível ainda ver uma imagem retratando um momento de conflito do casal. Sem nenhuma hipocrisia, nenhum de nós têm conflitos com parceiros?

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Julgamento não é observação

Por fim, precisamos ter cautela ao observar 'o outro'. Antes que nossos dedos insistam em se hastear rigidamente contra aquele que consideramos "diferente", "errado", "cruel", "dregadante", alguns questionamentos devem ser colocados. De maneira alguma defendo que as crianças vivam em ambientes impróprios ao seu desenvolvimento e/ou insalubres. Muito pelo contrário. No entanto, antes de reivindicar que a família retratada usuária de drogas (mas não fica claro que drogas são e isso faz toda a diferença), por que não se reivindica a oportunidade de um tratamento digno àqueles que querem ter a criança ao seu lado? Será mesmo que vamos defender a segregação de famílias, o isolamento forçado pelo Estado e essa quebra brusca na rotina da criança que é a ausência repentina de qualquer contato com a sua família? Antes de lutar para que a criança não mais veja os pais, que independente do que usarem, fornecem um laço afetivo e emocional, será que não pode-se pensar na possibilidade de um acompanhamento profissional com todos juntos, reforçando laços e a própria sociabilidade?

As fotos divulgadas na internet finalizam com uma imagem da criança em uma escola e sob a guarda do pai. Mas não se fala quem é o pai, o que ele usa, qual a sua rotina e que tipo de relação e acompanhamento ele tinha com a filha quando ela morava com a mãe. Será que isso não faz diferença? Por outro lado, será que a fotografia abaixo não apresenta uma diferença com relação às outras com relação a uma luz mais "clara", a um recorte mais amplo e outros recursos fotográficos disponíveis para reproduzir a visão de mundo do fotógrafo? Não há uma diferença técnica (ou ideológica) entre as fotos abaixo, ambas de momentos aparentemente felizes e de integração?

Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"
Foto de Irina Popova para o livro "Another Family"


quarta-feira, 5 de março de 2014

"Coisa de menino" e "coisa de menina": remando eternamente contra a maré

Não é nada fácil criar uma criança. Mais difícil ainda é exercer a pedagogia do que você acredita quando se rema contra a maré. Criticar, questionar e combater relações de gênero que consideramos opressoras ou humilhantes é um desafio diário, principalmente porque são os nossos ensinamentos em contraponto às observações da criança sobre outras pessoas a todo momento. Por mais que às vezes pensemos nisso, não dá pra criar os filhos numa bola de cristal e tudo aquilo que combatemos ou queremos evitar no caminho deles inevitavelmente aparecerá em vários momentos da vida. Portanto, melhor que evitar o embate é ensiná-los a lidar com isso e fazer suas próprias observações a partir das contradições que aparecem.

Há algumas semanas, venho percebendo que minha filha cria diálogos com as bonecas soltando frases como "isso é coisa de menina", "mulher não conserta nada" e, o mais grave de todos, "quero comer menininhas", com um fantoche do Visconde de Sabugosa na mão (logo o Sabugosa, gente). Entre as relações que ela desenvolve na escola, no parquinho do condomínio e com outras crianças da família, essas frases são mais do que comuns - são o reflexo do que muitas crianças aprendem em suas casas e em outros ambientes sobre o que seria a atribuição de tarefas "para mulher" e "para homens". Aquelas frases típicas que ouvimos na rua ou em eventos de família e não retrucamos para não criar mal estar.

Quando eu ouvi essa máxima colocada na boca do Sabugosa, parei o que estava fazendo no computador e me virei para ela. Olhos nos olhos, eu perguntei se ela acha que as "menininhas" são comida e se alguma vez na vida ela já viu uma pessoa comendo a outra. Expliquei que o que a gente come é o que se coloca na boca, como arroz, feijão, macarrão, tomate etc. As pessoas não são comida, elas brincam, amam, sorriem, vão à praia, mas não comem outras pessoas. Não tenho dúvidas que, ao soltar a expressão, ela não tinha noção do que significa a expressão "comer" nesse contexto, mas a conversa é válida para que ela não repita e exerça o combate sempre que a ouvir - com argumentos.

A velha questão das bonecas


A fotógrafa canadense Arlle Sebryk divulgou fotos de seus filhos brincando de boneca e diz que isso pode torná-los pais mais participativos
Por duas vezes, ela tentou brincar com dois amigos no parquinho dividindo suas bonecas com eles. Um deles, de cinco anos, se animou, propôs brincar de pai e mãe e saiu animado empurrando o carrinho da boneca. A mãe dele logo gritou e advertiu que quem brinca de boneca é menina, mas ele insistiu que queria. Não gosto de me intrometer na pedagogia alheia, mas pela proximidade que eu tinha com ela, me atrevi a opinar. Disse que achava isso uma bobagem, que ele não ia mudar em nada por brincar de boneca e que um dia ele poderia ser pai também, ou seja, a representação da paternidade na brincadeira não era absurda. Evangélica extremista, ela se limitou a dizer que não gostava. Respondi apenas que era uma pena cortar bruscamente a criatividade da brincadeira por algo que não valia à pena.


"A boneca de William", um livro de Chatlotte Zolotow,
fala sobre os dilemas de um menino que só queria ter uma boneca

Na outra oportunidade, com outro menino, ainda saíamos do apartamento, quando ela disse: "Vou pegar duas bonecas, uma pra mim e outra pra fulano". Eu já sabia a resposta que ela iria receber, mas não disse nada. Achei que ela tinha que receber a resposta e sentir a frustração para depois se indignar - algo que eu também sabia que iria acontecer. E aí sim, eu conversaria com ela. E foi exatamente assim: ela chegou animada chamando o menino de longe e falando que havia levado a boneca só pra brincar com ele. Ele olhou com cara de desdém e disse que não podia brincar de boneca. Como eu previa, ela ficou com raiva e veio falar comigo: "Mãe, fulano não quis pegar minha neném, não disse obrigado e não quer brincar comigo". Então lhe expliquei que as pessoas às vezes deixam de brincar com outras por motivos bobos, mas elas é que estão perdendo a oportunidade de viver bons momentos de diversão com pessoas tão generosas como ela. Que ela jamais se convença de que brincar de boneca é coisa de menina, porque não existe "coisa de menina" e "coisa de menino". E disse que ela poderia responder dessa maneira sempre que alguém dissesse o contrário.

A fotógrafa canadense Arlle Sebryk divulgou fotos de seus filhos brincando de boneca e diz que isso pode torná-los pais mais participativos

No livro "A boneca de William", de Chartlotte Zolotow, o personagem principal sofre um dilema porque gosta de brincar de bonecas. Se ainda hoje essa ideia incomoda tanta gente, imagina quando o livro foi escrito, em 1972. Em um país de ranço ainda tão machista e racista, por que não caminhamos no sentido de transformar certas práticas e alguns discursos pra finalmente promover algum elemento de igualdade? Questionamos a conduta de muitos homens que são desatenciosos, frios e não participam das tarefas domésticas, mas na hora de criar nossos filhos ensinamos que valores como carinho, sensibilidade e atenção são coisas de mulher.

Desconstruir essas relações enraizadas que criam caixinhas para encaixar "coisas de mulher" e "coisas de homem" é um exercício permanente. Mas a única 'arma' que temos contra toda essa opressão ideológica é o nosso próprio combate ideológico. E temos que ir até o fim!