Só enxergamos aquilo que estamos acostumados. As contas para pagar no final do mês, os eventos programados na agenda, o que falta comprar para completar a feira, a cor do semáforo de todo dia, a farda da escola... e por aí vai. A sensibilidade se perde no meio do caminho, porque não temos tempo de refletir, de chorar, questionar, perceber que aquela amendoeira da esquina que fazia sombra ao dominó da tarde foi cortada e que lua nova aponta no céu. É tudo ligado no automático, porque nos ensinam que tudo o que foge da "corrida pela vida" deve ser deixado para trás. Não faz sentido, não traz dinheiro, não te faz "alguém". Até que uma criança te dá um estalo e te faz perguntar onde estava seu olhar no momento em que o dela se chocou com as "leis" da humanidade.
Voltando da escola, de bicicleta, no mesmo caminho de sempre:
"Mãe, você já viu aquele cavalo amarrado ali? Ele só vive ali... bichinho... será que ele come? Quem dá comida pra ele? Ele dorme no chão? Cadê o pai dele?".
O começo de uma série de perguntas pra tentar entender uma lógica em que as pessoas se apossam dos animais da maneira que querem, e assim eles viram "propriedade". Em um primeiro momento, achei linda aquela preocupação com o cavalo. E então bateu um estalo: "Esse cavalo fica sempre ali, todos os dias, amarrado do mesmo jeito, em uma calçada minúscula, com uma corda tão pequena que mal dá pra ele mexer o pescoço. Quando olhei para o lado, não vi nada de diferente. Esse foi meu impacto.
Foi preciso uma criança pequena me dizer que eu tinha naturalizado uma cena que eu via todos os dias numa boa. Só depois que ela verbalizou o que sentia com aquele cavalo amarrado, eu pude perceber o quanto naturalizamos esse tipo de coisa. E, em meio à indignação dela, eu respondi de uma forma que só confirmou essa naturalização. "Minha filha, ele mora ali... é a casa dele. Se a gente soltar aquela corda, o dono dele vai brigar". Oi? Como assim? Me vi numa tentativa ridícula de justificar aquilo que estava acontecendo. Foi horrível, me arrependi na mesma hora, me senti péssima, apagando uma chama de justiça, de sensibilidade, humanidade...
Parei a bicicleta.
"Minha filha, você tá certa. Ele tá sofrendo, precisa de ajuda. Talvez a gente pudesse cortar aquela corda, eu posso pegar a tesoura que tá no quarto".
"Isso, mãe! Vamos lá, a gente pega e volta escondido. Ninguém vai perceber, ele vai ficar livre!", com uma alegria tão grande.
Putz, e agora? Se eu soltar aquele cavalo, ele vai ficar zanzando pelo bairro e pode causar um acidente. Eu não tenho condições de criar um cavalo. E se o dono tiver uma arma? E se alguém apontar pra ele? "Foi aquela ali que roubou seu cavalo". Que dilema!!
E desde então aquela cena que eu via todos os dias não saía da minha cabeça agora. Coitado daquele cavalo, tão magro, amarrado com aquela corda tão pequena... ela tava certa, alguma coisa tinha que ser feita. E se eu mudasse a rota? Ela não veria mais o cavalo, não ficaria mais chateada. Que ridículo, o cavalo vai continuar ali sofrendo e eu escondendo a realidade de uma criança que queria mudá-la.
Bom, vamos pensando no que fazer. A cena se seguiu por alguns dias, as perguntas voltavam:
"Mãe, a gente ainda não soltou ele. Olha ali, você tem que pegar logo a tesoura".
"A gente vai dar um jeito, tô esperando o dono dele viajar, filha. Aí a gente vem de noite e corta".
Até que, um belo dia, passamos... cadê o cavalo? Sumiu. Dois dias. Nada. Três dias. Nada.
"Filha, eu acho que alguém chegou primeiro e libertou ele."
"Quem?"
"Não sei... foi você? Escondido de mamãe?"
"Não, mãe! Eu não sei abrir a porta sozinha".
"É verdade... então eu acho que foi algum vizinho chateado com a dor dele".
"Ah que vizinho bom. Não!!! E se ele amarrar de novo? Agora ele virou dono também. A gente tem que ir lá dizer a ele pra dar comida - com o dedo da Mafalda - e não deixar ele amarrar de novo!" (batendo uma mão na outra, com força).
"Tá bom, vamos dizer. É tão triste essas pessoas que não cuidam dos bichinhos, né?"
"É. A gente tem que amarrar elas!"
"Nãããão, minha filha..."
Novo dilema a ser resolvido.