sábado, 31 de agosto de 2013

Será que não estamos ajudando a formar Michelines?

Sou muito chata com o que minha filha assiste. Muitos desenhos animados produzidos para as crianças atualmente têm um conteúdo extremamente preconceituoso, segregador, racista e que ensinam que há um papel específico para o menino e outro para a menina. Não poucas vezes, uma total reprodução das relações viciadas que busco combater. Já aniquilei vários da caixinha de minha filha por detalhes aparentemente 'bobos'. 

Os piores de todos eu cortei sem que ela nem pudesse assistir: a Barbie e as princesas da Disney. Fui e sou muito criticada por isso, na opinião dos que dizem que simplesmente não deixo ela assistir o que não gosto. E repito que a questão não é o meu gostar ou não, mas há animações que são um completo desserviço à formação cultural de qualquer criança. Sempre tive problemas com as princesas do Disney por compreender de forma muito clara que é um desenho que há anos tenta padronizar um modelo de mulher dócil, submissa, sempre disposta a abrir mão de tudo por conta de um príncipe que "a salve", o "casamento dos sonhos" e os tão "sonhados" filhos. Como posso permitir que minha filha crie como referência uma princesa que nada conhece além de seu castelo e de seus servos imigrantes de aparência indiana? A realidade de uma mulher brasileira é dura pede muito mais. O mundo em que merecemos viver pede muito mais.  

Por isso, fiquei chocada ao acompanhar o depoimento de uma colega de profissão que, indignada, compara a aparência das médicas cubanas à de empregadas domésticas e, por conta disso, desacredita e desqualifica o profissionalismo e a capacidade das médicas. Não é que me espante viver em um país de ranço escravocrata e racista, pois seus sinais são muito nítidos. Ora, se a jornalista em questão tem uma imagem determinada sobre os negros em seu imaginário, o que me chama atenção em casos como esse é que pouco se atenta à questão de que essas imagens, muitas vezes fixadas e irredutíveis, também são construídas durante a infância. Quantas princesas ou médicas negras essa mulher deve ter visto em algum desenho animado, filme ou qualquer outro lugar na televisão? Que tal perguntar a ela quantas vezes na vida ela sonhou em ser a Cinderela, a Bela Adormecida ou a Branca de Neve? Não podemos nos espantar se ela disser que nunca sonhou em ser a Diana, da Caverna do Dragão (a única negra do desenho que, "coincidentemente", usa roupas que remetem à imagem do selvagem).

A "branca dócil" e a "negra selvagem"
Qual das duas alimenta mais sonhos nas crianças?
Nenhuma criança nasce racista, isso é óbvio. Então, de que maneira o racismo se constrói na construção de sua personalidade, de seu imaginário? Esse é o tipo de pergunta que nunca terá uma resposta simples e objetiva. Mas é preciso reconhecer a força do que as crianças assistem para a fixação dessas imagens sobre os "tipos" e "perfis" que elas criam sobre as pessoas. Por conta disso, também cortei a Turma da Mônica. Já havia percebido uma série de diálogos entre o Cebolinha e a Mônica extremamente machistas e que depois não eram desconstruídos. Mas esperei o DVD acabar. Foi quando me deparei com um episódio em que Mônica dava conta do desaparecimento de seu coelho, Sansão e logo ia tirar satisfação com o Cebolinha. Para seu espanto, não tinha sido ele. Cebolinha então se propõe a investigar o sumiço do coelho e depois descobre que a empregada que trabalha na casa da Mônica o havia levado para a lavanderia. Qual não foi meu espanto ao ver uma mulher nitidamente mais gorda que todos os outros personagens, com sotaque fortemente nordestino e negra. O que me espantou não foram os traços físicos e regionais da mulher, mas a ridicularização com que ela se apresentava. Troquei o DVD na hora e disse a minha filha que o da Mônica havia quebrado.

Representação da empregada doméstica na Turma da Mônica
Fiquei chocada! Depois me lembrei de um desenho que ela assistia muito na época em que tínhamos TV a cabo: a Dra. Brinquedos (Doc McsStuffins). Embora seja um desenho da Disney, é um dos nossos preferidos. Trata-se de uma menina super simpática, que tem uma clínica de brinquedos, onde conserta rasgões, arranhões, quebradiços etc. dos seus brinquedos,sempre conversando e "clinicando" de maneira bem humanizada. A Dra. Brinquedos é negra, assim como toda a sua família. Outro elemento que me chama a atenção é que seu pai é quem cozinha (ele é cozinheiro), enquanto a mãe vai trabalhar (ela é médica). Através desse desenho, minha filha percebe uma médica negra, sua filha negra que sonha em ser médica e um homem que cozinha para a família (diferente da maioria dos desenhos, onde apenas a mãe exerce trabalhos domésticos, inclusive na Turma da Mônica). 

Dra. Brinquedos - uma pequena médica negra e
que trata seus pacientes de maneira humanizada
Inclusive, em um dos episódios, um dinossauro de brinquedo fica com mau hálito por conta de um pedaço de comida que fica nos dentes. Para resolver o problema, a Dra. Brinquedos escova seus dentes. Depois desse episódio, minha filha, que nunca queria escovar os dentes, sempre me diz que tá com mau hálito e pede pra escovar. São esses detalhes me fazem perceber a diferença que faz um desenho na formação de uma criança. Por isso, se eu fosse amiga dos pais da Micheline, diria com toda segurança: "Gente, apresenta a Dra. Brinquedos pra ela, e não a Turma da Mônica". 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O Renascimento do Parto

Cena do filme "O Renascimento do Parto"
Foto: Além D´Olhar
Sempre digo que, se na minha época de gravidez, tivesse tido acesso às informações e discussões que tenho hoje, teria parido naturalmente - e recusado a cesária, tão fortemente recomendada pela obstetra. No final das contas, minha filha segue bem e saudável, mas depois que vi um trecho do filme "O Renascimento do Parto" - sob a direção de Eduardo Chauvet e roteiro/produção de Érica de Paula -, me deparei seriamente com a situação de ter sido levada pela corrente do que os outros determinam para o seu parto, e não você. E o pior, operando com a desinformação.

Crescemos sem perceber o protagonismo que nos foi retirado em algum momento e acabamos sendo levadas por recomendações médicas (tão inquestionáveis) que muitas vezes estão repletas de interesses pessoais e financeiros. Quando a obstetra me disse que o parto cesáreo seria melhor porque minha filha estava muito grande e talvez não tivesse dilatação, não pensei duas vezes: pode marcar! Mas depois você aprende que isso é uma justificativa vazia e que os profissionais que deveriam te tranquilizar, na verdade te impõem o medo para depois apresentar algo que parece uma grande solução. 


Parto em banheira de hospital
Foto: Carol Dias
O número de partos cesáreos realizados sem necessidade cresce assustadoramente e nos faz questionar o porquê de transformar um momento tão humano, maravilhoso e único em uma reunião de negócios, na qual todos marcam o horário, cada um faz a sua parte e a mãe sequer sente a emoção de parir. Em algum momento, percebi até que uma das profissionais da equipe de parto colocou seus braços em minha barriga e apoiou seu corpo com muita força, como se estivesse empurrando minha filha até o corte feito no final da barriga. Quando minha filha nasceu, eu não vi seu rosto, não amamentei, não segurei no braço. Fiquei horas esperando algum sinal de vida enquanto levavam ela com urgência para uma sala de UTIN e ninguém me informava nada direito. Somente 15h após o parto tive a oportunidade de vê-la, amamentar, abraçar, sentir seu cheiro, conversar... e hoje sei que poderia ter sido diferente, pois um dia de tanta emoção na verdade se transformou em uma lembrança traumática. Sempre pode ser diferente. Conversando com outras mães, percebo que essas angústias não são somente minhas. Muito pelo contrário. 

Por isso que estamos acompanhando o surgimento de cada vez mais discussões, matérias e vídeos sobre parto humanizado, sobre a importância de você perceber e sentir seu corpo na hora do parto, de transformar a dor em emoção, estimular a participação ativa do pai (que lhe é negada na maternidade) em um momento que na verdade é dos dois. Há vários tipos de partos e na consulta com o obstetra essas alternativas não nos são apresentadas e esclarecidas. Por isso que no dia 6 de setembro todos temos um compromisso com nossos corpos, nossos filhos (que vieram e que virão), nossa saúde e, mais importante, nossa felicidade e bem-estar. 

É nesse dia que o Cine Vitória receberá "O Renascimento do Parto", depois de muita luta e mobilização da Casa Curta-se e de grandes mulheres de nosso Estado que insistem para que retomemos o protagonismo de nosso próprio parto. É grave saber, por exemplo, que 70% das gestantes expressam desejo pelo parto normal no início da gravidez e no último trimestre apenas 30% mantém essa vontade, segundo levantamento da Agência Nacional de Saúde (ANS) - como foi o meu caso, inclusive. Em uma das entrevistas que li com a Érica de Paula, ela disse trabalhar com gestantes há quatro anos e nesse tempo percebeu "um alto grau de desinformação das mulheres, que deixavam nas mãos dos médicos as decisões sobre os partos e acabavam submetidas a cesárias desnecessárias". Vamos lá? Nos encontramos no Cine Vitória!

Convidamos você a assistir o filme e trocar sua opinião e experiência conosco.

Quando:
06/09 - 16h30
08/09 - 15h
10/09 - 19h

Público-alvo: Pais, mães, gestantes, educadores, doulas, terapeutas, estudantes e profissionais da saúde. A todos nós que nascemos e aos bebês que virão.

Classificação: 10 anos.

Valor
R$ 5,00 - meia-entrada
R$ 10,00 - inteira

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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Hostilidade dos médicos brasileiros: já estamos acostumados

Após muita polêmica, chegam ao Brasil os primeiros médicos estrangeiros - cubanos, mais especificamente - , como parte de um convênio com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo o próprio programa criado pelo Governo Federal - Mais Médicos -, esses profissionais seriam escalados para atuar em áreas onde há carência de profissionais da saúde. Segundo o Ministério da Saúde, o atual déficit de médicos no país é de 54 mil – número contestado por organizações médicas brasileiras.

Não quero aqui entrar no mérito de ser a favor ou contra o programa. O que me chama atenção nesse momento é a hostilidade com que esses profissionais têm sido recebidos nas cidades de Salvador, Brasília, Recife e Fortaleza. Mesmo com um número irrisório de 1,8 médico para cada mil habitantes no Brasil, os médicos brasileiros jogam a responsabilidade na falta de estrutura das unidades de saúde da rede pública e na ausência de planos de carreira consistentes. O presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto Luiz d´Avila, disse ainda que "[Os médicos brasileiros] não estão no interior do país porque o governo nunca teve uma política pública de interiorização da assistência".

Sei que é difícil para o presidente de um conselho federal conhecer a realidade de cada povoado em cada interior desse país, mas essa afirmação é, no mínimo, contraditória. Não falo isso por especulações ou adivinhações, mas por experiência própria. Trabalhei alguns meses no caderno de Municípios de um jornal semanal local e não foram poucas as vezes que me desloquei com uma equipe de reportagem para povoados no interior de Sergipe onde a população reclamava da falta de médicos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) - toda semana tínhamos pelo menos um caso desse pra apurar. Em todos os casos (todos sem exceção) em que nos deslocamos para esses locais, a ausência de médico não era por falta de contratação. Tínhamos acesso à folha de pagamento dos respectivos municípios e os documentos comprovavam que havia profissionais escalados e salários depositados em suas contas. 

A população desses povoados ficava sem atendimento unicamente porque esses profissionais não iam trabalhar - em alguns casos, contatávamos que eles estavam atendendo em clínicas particulares em dias e horários em que deveriam atender e clinicar a população que depende do Sistema Único de Saúde (SUS). Há falta de estrutura na rede pública de saúde? Há. Há problemas com relação ao plano de carreira? Com certeza. Mas será que problemas estruturais justificam o recebimento dos salários, para deixar na mão pacientes mais carentes do mínimo de assistência em detrimento de pessoas que podem pagar uma consulta particular?  

Lembro-me também que a maioria das reclamações que recebíamos vinha de mulheres e mães, que necessitavam de exames pré-natais e outras especificidades ginecológicas e obstetrícias. Não precisa nem ser médico pra saber que mulheres e crianças têm especificidades no atendimento à saúde e que são as mais prejudicadas com a falta de atendimento. Principalmente as gestantes e parturientes. Pouco tempo depois de fazer essas matérias, descobri que estava grávida e agora era a minha vez de sentir na pele o que aquelas entrevistadas passavam. Fiz todo o meu pré-natal pelo SUS, pois não tinha mais plano de saúde e depois de grávida não há como contratar um plano - por exemplo, uma mulher que assina um plano de saúde só tem direito à cobertura do parto depois de 10 meses. 

Posso dizer que não foi nada fácil. Não foram poucas as vezes que voltei pra casa me sentindo humilhada e e até mesmo culpada por uma gravidez. O menor tempo que esperei pra ser atendida por um obstetra foi cinco horas. E em um desses dias eu e mais uma dezena de gestantes tivemos que esperar o médico chegar por duas horas - duas horas de atraso para atender gestantes. E, depois de esperar por horas para uma simples consulta, o que recebíamos era um tratamento muito diferente da humanização proposta pelo Governo Federal. Por vezes invasiva e humilhante, inclusive. Lembro-me muito bem que em uma das consultas o médico falou para mim que o mal da gestante é querer escolher o tipo de parto que ela vai ter - porque quem sabe o tipo de parto a ser realizado é o médico. Disse que as mulheres hoje em dia são muito "frescas" para parir e que ninguém quer sentir mais dor. Topa em você como se seu corpo - e a sua barriga - fosse um botão de elevador.

Foi então que hoje eu li uma notícia que informava a hostilidade com que os médicos cubanos foram recebidos em Fortaleza na noite de ontem, 26. Aí eu pergunto: qual a novidade? Nada muito diferente para quem já está acostumado a receber com hostilidade os pacientes do SUS - isso me remete até a uma história que ouvimos da agente de saúde que ia à minha casa. Segundo ela, por vezes uma mulher que acaba de ser estuprada ou violentada chega à Unidade de Saúde para fazer a coleta e muitos médicos têm nojo de fazer o exame. Simplesmente mandam ela voltar pra casa e tomar banho ou encaminham ao Instituto Médico Legal (IML).

Sala improvisada para atendimento em hospital de Fortaleza,
chamada por pacientes e visitantes de "piscinão" (Foto: André Teixeira/G1)
Então eu pergunto: são esses os médicos que estão preocupados com a saúde pública? Ou estão preocupados com a reserva de mercado? Ou estão revoltados porque percebem que agora será mais difícil assinar a folha pra receber o salário do município e abandonar a população pobre para atender pacientes ricos em uma clínica particular? Se há preocupação com a população brasileira e a saúde pública, não há porque fazer esse escarcéu - quanto mais profissionais, melhor. E questionar a qualidade da formação de medicina em Cuba é extremamente contraditório, ao passo que "estudaram em Cuba e lá se formaram, entre outros, dois filhos de Paulo de Argollo Mendes, presidente há 15 anos do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul e critico ferrenho do programa Mais Médicos". Sem falar nos índices extremamente contrastantes com a realidade caótica do Brasil. 

Por isso, eu pergunto: essa recepção dos médicos brasileiros aos médicos cubanos é algo muito diferente do tratamento que recebem os pacientes do SUS?  



domingo, 18 de agosto de 2013

Quem nunca... reproduziu uma ordem sem sentido?

Volta e meia me pego nas contradições que envolvem a tentativa de ser uma mãe moderna, libertária, e o ranço da criação conservadora que tanto criticamos. Quebrar velhos paradigmas é um exercício bem difícil, mas a autocrítica também nos ajuda a colocar os pés no chão que queremos pisar. É muito raro eu incluir biscoitos recheados na alimentação de Maria Joana, mas hoje acabei cedendo. Justamente por ser um fato raro, achei que não teria problema ela comer alguns biscoitos doces com recheio. Normal.

A questão é que assim que dei o biscoito, a vi separando as partes com o dedo e comendo apenas o lado do biscoito que tem recheio. Imediatamente, reclamei e disse que ela teria que comer o biscoito todo, senão eu não daria mais. Ela disse que tudo bem e foi para o quarto. Depois voltou e pediu outro. Foi comer no quarto. Voltou e pediu mais outro. Foi comer no quarto. Depois de três vezes indo e voltando do quarto, eu percebi que ela já estava fechando a porta. Quando me levantei e fui até lá, vi todas as metades-sem-recheio do biscoito encostadas num canto. Me senti vendo um filme da minha infância: eu fazia a mesma coisa e minha mãe dizia a mesma coisa. Então me veio um insight: "Por que cargas d´água ela tem que comer a parte sem recheio?".


Uma coisa é servir o almoço com arroz, feijão, carne, salada, batata frita etc. e a criança comer apenas a batata frita. Nesse caso, existe um sentido em tentar fazer com que ela coma a parte mais saudável, e não só a fritura. Mas, se ela já está comendo um biscoito recheado, qual o sentido de forçá-la a comer a parte sem recheio? Não há. Ainda mais lembrando quantas vezes eu mesma fazia isso e nunca fui convencida da importância de comer a parte que eu não queria - escondia embaixo do colchão, jogava no lixo, mas não comia.

Quando vi Maria Joana subvertendo minha ordem sem me enfrentar, percebi o quanto reproduzimos detalhes de nossa criação sem ao menos nos perguntarmos qual o real sentido e se realmente queremos fazer daquele jeito. Coisas de mães-pseudo-modernas.