quinta-feira, 2 de abril de 2015

Como cavalos sem donos

Só enxergamos aquilo que estamos acostumados. As contas para pagar no final do mês,  os eventos programados na agenda, o que falta comprar para completar a feira, a cor do semáforo de todo dia, a farda da escola... e por aí vai. A sensibilidade se perde no meio do caminho, porque não temos tempo de refletir, de chorar, questionar, perceber que aquela amendoeira da esquina que fazia sombra ao dominó da tarde foi cortada e que lua nova aponta no céu. É tudo ligado no automático, porque nos ensinam que tudo o que foge da "corrida pela vida" deve ser deixado para trás. Não faz sentido, não traz dinheiro, não te faz "alguém". Até que uma criança te dá um estalo e te faz perguntar onde estava seu olhar no momento em que o dela se chocou com as "leis" da humanidade.

Voltando da escola, de bicicleta, no mesmo caminho de sempre:

"Mãe, você já viu aquele cavalo amarrado ali? Ele só vive ali... bichinho... será que ele come? Quem dá comida pra ele? Ele dorme no chão? Cadê o pai dele?".

O começo de uma série de perguntas pra tentar entender uma lógica em que as pessoas se apossam dos animais da maneira que querem, e assim eles viram "propriedade". Em um primeiro momento, achei linda aquela preocupação com o cavalo. E então bateu um estalo: "Esse cavalo fica sempre ali, todos os dias, amarrado do mesmo jeito, em uma calçada minúscula, com uma corda tão pequena que mal dá pra ele mexer o pescoço. Quando olhei para o lado, não vi nada de diferente. Esse foi meu impacto.

Foi preciso uma criança pequena me dizer que eu tinha naturalizado uma cena que eu via todos os dias numa boa. Só depois que ela verbalizou o que sentia com aquele cavalo amarrado, eu pude perceber o quanto naturalizamos esse tipo de coisa. E, em meio à indignação dela, eu respondi de uma forma que só confirmou essa naturalização. "Minha filha, ele mora ali... é a casa dele. Se a gente soltar aquela corda, o dono dele vai brigar". Oi? Como assim? Me vi numa tentativa ridícula de justificar aquilo que estava acontecendo. Foi horrível, me arrependi na mesma hora, me senti péssima, apagando uma chama de justiça, de sensibilidade, humanidade...

Parei a bicicleta.

"Minha filha, você tá certa. Ele tá sofrendo, precisa de ajuda. Talvez a gente pudesse cortar aquela corda, eu posso pegar a tesoura que tá no quarto".

"Isso, mãe! Vamos lá, a gente pega e volta escondido. Ninguém vai perceber, ele vai ficar livre!", com uma alegria tão grande.

Putz, e agora? Se eu soltar aquele cavalo, ele vai ficar zanzando pelo bairro e pode causar um acidente. Eu não tenho condições de criar um cavalo. E se o dono tiver uma arma? E se alguém apontar pra ele? "Foi aquela ali que roubou seu cavalo". Que dilema!!

E desde então aquela cena que eu via todos os dias não saía da minha cabeça agora. Coitado daquele cavalo, tão magro, amarrado com aquela corda tão pequena... ela tava certa, alguma coisa tinha que ser feita. E se eu mudasse a rota? Ela não veria mais o cavalo, não ficaria mais chateada. Que ridículo, o cavalo vai continuar ali sofrendo e eu escondendo a realidade de uma criança que queria mudá-la.

Bom, vamos pensando no que fazer. A cena se seguiu por alguns dias, as perguntas voltavam:

"Mãe, a gente ainda não soltou ele. Olha ali, você tem que pegar logo a tesoura".

"A gente vai dar um jeito, tô esperando o dono dele viajar, filha. Aí a gente vem de noite e corta".

Até que, um belo dia, passamos... cadê o cavalo? Sumiu. Dois dias. Nada. Três dias. Nada.

"Filha, eu acho que alguém chegou primeiro e libertou ele."

"Quem?"

"Não sei... foi você? Escondido de mamãe?"

"Não, mãe! Eu não sei abrir a porta sozinha".

"É verdade... então eu acho que foi algum vizinho chateado com a dor dele".

"Ah que vizinho bom. Não!!! E se ele amarrar de novo? Agora ele virou dono também. A gente tem que ir lá dizer a ele pra dar comida - com o dedo da Mafalda - e não deixar ele amarrar de novo!" (batendo uma mão na outra, com força).

"Tá bom, vamos dizer. É tão triste essas pessoas que não cuidam dos bichinhos, né?"

"É. A gente tem que amarrar elas!"

"Nãããão, minha filha..."

Novo dilema a ser resolvido.

 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Crianças são apenas crianças - e não a garota-propaganda da Avon

Uniforme escolar é sempre uma polêmica. Pai/mãe/avó/avô que já teve que procurar 1.001 argumentos pra explicar à criança o porquê de ter que usar uma roupa horrorosa, calorenta e um sapato fechado com meias pra ir à escola - independente do clima - sabe bem o que é isso. Maria Joana cresce frequentando uma universidade pública, espaço repleto de áreas verdes onde milhares de adultos entram e saem de sandália, chinelo, camiseta, vestido, shorts... isso já foi pauta de algumas conversas, na verdade: o contraste entre a disciplina da escola dela e a liberdade de quem estuda na nossa escola (no caso, a UFS). Mas até que tem sido uma oportunidade legal de diálogo.

No entanto, há outro contraste entre a rotina dela e o que vê na escola: as mochilas. Quando compramos pra ela uma mochila simples, com o desenho de uma gatinha que imita a Marie (chamamos de "Marie genérica"), ela ficou eufórica porque tinha rodinhas pra arrastar e a lancheira pra colocar nas costas. Nunca me pediu uma igual às dos colegas, mas quando chegamos à escola, o que vejo são os pares dela entrando com verdadeiros transformers: mochilas que viram carro, salão de beleza, casa da princesa, Barbie que vira borboleta, e até mochila com glitter!! Meninas e meninos de 3, 4 anos. É algo que me perturba ver tantas crianças pequenas já inseridas na lógica do consumismo. 

Como Maria Joana nunca me pediu nada daquilo, apenas sugeri em uma conversa que esse é um espetáculo do qual ela não precisa fazer parte. São pequenas coisas que trazem incômodos à nossa criação, porque a gente sabe que, na idade dela, é muito recorrente querer tudo o que os outros amiguinhos têm. Ensinar um estilo de vida que rejeita o consumismo e valoriza outros aspectos da relação humana é cada vez mais complicado. Principalmente quando olhamos ao redor e vemos que somos muito poucos (e é por isso que sempre damos um jeito de fortalecer nosso círculo de convivência). 

Mas hoje vi uma cena que me impressionou: da porta, eu observava minha filha entrando na sala, quando chegou uma outra criança do mesmo tamanho. No lugar do uniforme, uma roupa muito extravagante pra uma criança, de batom, uma coroa na cabeça, numa mão uma varinha de condão e na outra a mochila dela (da Barbie com glitter, pra completar o visual para o qual ainda não encontrei adjetivos). Quando comecei a caminhar em direção à Coordenadora Pedagógica da escola pra perguntar se hoje tinha alguma festa à fantasia da qual eu não teria sido avisada, percebi que ela tomou um susto quando viu a menina entrando daquele jeito e procurou os pais, mas sem sucesso. Pelo espanto dela, percebi que era um fato atípico.

Mas percebi também que Maria Joana não parava de olhar para a menina (todas as outras crianças, na verdade). No início, com um olhar de espanto, mas quando ela olhou pra mim com aquela cara que eu já conheço, gesticulei para que ela continuasse seguindo o caminho. Já prevejo que ela vai chegar em casa pedindo pra ir à escola daquele mesmo jeito. Isso não é o problema, até que já estamos acostumados com esse tipo de diálogo.

Mas o que me preocupa é essa infância tão consumista. Tão vaidosa, tão preocupada com o batom que vai usar pra ir à escola ou o glitter da sua mochila da Barbie. Sempre digo que sou contra qualquer tipo de fórmula ou padrão pra criar os filhos. Também sou contra qualquer tabelinha ou cronograma que associe hábitos às idades e que devam ser encarados como padrão. Sou contra esse tipo de normatização. Mas sou a favor do bom senso. Crianças são apenas crianças - e não a garota-propaganda da Avon. 

E você, que acha que preserva a infância e a saúde mental de seu filho quando procura criar pra ele um universo simplesmente infantil, se sente isolado, ultrapassado, careta, riponga, alternativo. Tem medo que os coleguinhas chamem ele de pobre porque a mochila é simples. Mas que na verdade é a mochila ideal para levar os materiais de que ele precisa pra se alfabetizar. Acha que o batom é um cosmético fabricado para uma boca adulta, e que é um acessório extremamente dispensável pra se divertir. Acha que a criança não tem que se preocupar com nada além de arrumar o próprio quarto, cuidar dos brinquedos e tratar bem o coleguinha da escola, do parquinho, os priminhos... mas tudo isso que você acha se torna "alternativo" diante de um padrão de infância tão consumista e competitivo. O que me causa uma confusão mental é insistir na pergunta: por que criar seu filho como uma criança é algo considerado "alternativo"?

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

"Nunca mais eu deixo pra cultivar meus amores depois"

Tem momentos na vida que a gente se sente sufocado. Problemas pra resolver, burocracias pra dar conta, prazos pra cumprir, trabalho, estudo... Assim venho me sentindo nos últimos tempos. Sem explicação racional e aparente, nos últimos meses acabei me entregando aos poucos a essa rotina que faz a gente acordar e dormir pensando em como resolver tanta demanda - mas apenas isso. Meu caminhar, pensar, sentir, todas as minhas energias, voltadas a compromissos e obrigações e a resolver os problemas que vão aparecendo no meio do caminho.

Aos poucos, já andava sem vontade de sair de casa. E quase sempre com a cabeça tensa e pouco tolerante - inclusive com minha filha. Nos últimos tempos, vinha me irritando com esse hábito dela de "ficar em cima" quando percebe a gente tenso, irritado, chateado, chorando, brigando... enfim, é nesses momentos que ela inicia uma conversa, faz perguntas, quer ficar no colo, chama pra comer etc. Cheguei a reclamar um bocado com ela por causa disso, e mesmo sem querer, acabei descontando algumas irritações nela.

Mas os encontros da vida sempre nos surpreendem e se encarregam de dar aquele sacode de que precisamos. Em pleno domingo, saí de casa me arrastando, às 6h da matina, pra ajudar na organização de um café da manhã beneficente. É isso, acordar muito cedo me deixa de mau-humor - principalmente no domingo. Só depois percebi que foi uma oportunidade tão revigorante de sair de casa, comer umas frutas na beira da praia e encontrar bons parceiros de mundo que sempre nos animam. Ao final do café, já tava animada pra voltar para casa e dormir, quando sentei pra conversar com uma companheira de maternidade que conheci há pouco tempo pelo Facebook.

Conversa vai, conversa vem, ela me pergunta sobre como anda o mestrado - foi a deixa pra eu começar a desabafar descontroladamente sobre a dissertação, os problemas do campo de pesquisa, a insegurança, e o quanto eu não conseguia canalizar os momentos de irritação pra evitar descarregar na minha filha e em outros ao redor.

Ela então comentou que, quando passou por essa fase, brigava muito com o marido e a família ficava tensa. Disse que me entendia perfeitamente, mas que depois desse momento, refletiu e colocou uma coisa na cabeça: mestrado, trabalho, obrigações.. nada disso seria justificativa pra deixar de lado as pessoas que na verdade seguem ao lado dela nessa caminhada da vida. "Posso qualificar amanhã, posso estar com o prazo apertado, posso ter mil coisas pra resolver, mas primeiro eu vou me certificar de como está minha família. Se tá tudo bem com meu companheiro, se minha filha tá ótima, agora sim, eu sento e me concentro no que eu tenho que fazer. É assim que resolve? Pronto, eu vou lá e faço. Nunca mais eu deixo pra cultivar meus amores depois".

Enquanto a gente conversava, o marido e a filha dançavam alegremente ali perto e eu nem tinha mais nada a dizer e tentei segurar o choro. Percebi que "ficar em cima" era o jeito de minha filha dizer: "Olha, eu tô aqui com você", nos momentos de tensão. E eu não fui capaz de compreender isso - ou talvez tenha percebido e não soube retribuir. Acordar cedo no domingo e estar naquele lugar me proporcionou esse encontro - e muitos outros, tão deliciosos quanto - e foram as palavras dessa mulher que eu conheço tão pouco que me deram o sacode que eu precisava.

E a cada dia tenho mais certeza de que nenhum encontro acontece à toa. Depois disso, decidi coroar o domingo com um banho de rio, ao lado dos amores e amigos. E decidi que nunca mais posso esquecer de cultivar o que é mais importante nessa caminhada. Esse domingo que me tirou da cama às 6h foi um dos melhores que já vivi.



sábado, 2 de agosto de 2014

Sobre a fantástica amizade de criança

Amizade de criança é a coisa mais fantástica que existe na humanidade. Não precisa de muito: elas se encontram, se olham e basta a primeira correr. Pronto, uma não sabe o nome da outra, nem endereço, telefone, escola... não precisa perguntar nada. Basta aquele olhar cúmplice do tipo: "Brinca comigo?" na fila do supermercado, e dali a pouco uma já está chamando a outra pra continuar a brincadeira em sua casa. Às vezes nem isso: quando o pai ou a mãe, com a pressa esmagadora da rotina, chama: "Bora, filho", um tchauzinho com a mão termina de selar o momento, como se fosse um: "Foi bom, adorei, mas agora tenho que ir, a gente se encontra qualquer dia pela vida, ou quem sabe nunca, mas não tem importância. Fui!".

Não há olhares tortos para a roupa da outra, uma não quer saber se o chinelinho da outra é velho ou se a sandália está fora de moda, se a outra é gorda, se o cabelo está assanhado, se aquela calcinha bunda-rica (tem coisa mais fofa que essa calcinha?) foi comprada na C&A ou na Farm, não há julgamentos voltados às compras no carrinho, não acontece o famoso olhar "de cima para baixo", cuja principal função é tentar atribuir um status social àquela pessoa que se olha, acompanhado de comentários do tipo: "Você viu? Acho ridículo quem sai de casa com uma roupa daquela".


E então crescemos. Se não pudermos ficar com o cabelo mais bonito que o da vizinha, a vida não serve pra nada. Tudo só tem graça se pudermos ter o corpo da capa da Playboy, com direito a desqualificar a outra pra se sentir melhor: "Você viu quantas celulites ela tem? Nem é essas coisa toda". Divididas em "mulher pra casar" e "mulher pra pegar", aprendemos que o sucesso de uma vida depende do quanto conseguimos nos encaixar em padrões estabelecidos, em preparar a aparência de forma tal pra conseguir um homem, um emprego, ser 'a mais desejada' do condomínio, 'causar inveja' às outras da universidade, 'arrasar' na festa em que fulaninha vai estar. Aprendemos que relacionamento é troféu e, além de ser ostentado como objeto de felicidade e realização, também deve ser disputado a tapas com a "primeira biscate que se aproximar".

Torna-se impensável estabelecer qualquer relação de amizade e solidariedade com qualquer mulher, ainda mais a desconhecida na fila do banco. Por que será que as coisas mudam tanto? A partir de que momento deixamos de ser aquela pequenina simpática que se afeiçoa a qualquer outra que quiser partilhar um bom momento e passamos a nos degladiar, nem que seja "com os olhos"? E se fizéssemos um exercício de autocrítica, de reflexão, pra tentar entender o porquê de mudarmos tanto nesse sentido? E se a gente tentasse fazer diferente?


E se simplesmente passássemos a observar nossos filhos interagindo com outras crianças? Quanto será que poderíamos aprender com eles? Não, não estou dizendo que todos devem sair correndo com um desconhecido pela fila do banco - a não ser que você e o desconhecido queiram. Mas acho que seria interessante observarmos a facilidade que nossos filhos têm de sorrir, conversar, brincar, interagir de forma positiva com qualquer outro ao lado, sem razão alguma. Apenas sorrir, trocar um bom momento de conversa, de risada, de solidariedade, mesmo que você nunca mais veja aquela pessoa, mesmo que nem saiba o que ela faz da vida, com quem ela transa, se é casada, qual tipo de roupa ela usa e o que gosta de fazer nos finais de semana.

Apenas viver, partilhar a vida, tornar um momento chato como a fila, o engarrafamento, as pesquisas da feira, a meia-hora de caminhada na esteira da academia, o jantar de família que você não pode faltar, naquela lembrança que você sempre vai ter, de uma mulher tão simpática que contou uma história tão interessante que você nem viu as horas passarem. Percebemos que nossos filhos têm muito a nos ensinar quando nos sentimos "forçados" a interagir com os pais do amiguinho que tá brincando com eles.

sábado, 19 de julho de 2014

"Os vestidos de Frida" chegaram

A primeira vez que vi uma pintura da Frida Kahlo, fiquei paralisada. Não sabia o que a pintora queria transmitir, mas a primeira interpretação que fiz foi a de um corpo feminino aprisionado em uma espécie de dor. 

"Coluna Rota", de 1944, foi a primeira
obra de Frida com a qual tive contato
Desde então, fui tendo contato com outras pinturas até finalmente ler algo sobre sua vida e obra. Encaro Frida como um símbolo - uma pessoa que teve a rara capacidade de transformar a dor física e emocional em arte, poesia e transformação. Com atitudes aparentemente individuais, como usar uma roupa e arrumar o cabelo de uma determinada forma, Frida refletiu seu estilo em em significativos impactos sobre o conceito de belo e sobre sua própria identificação com a cultura de seu país. 

Tudo o que fazemos no nosso corpo se reflete em uma maneira de nos apresentarmos socialmente e foi isso que Frida fez ao optar pela exaltação da cultura mexicana, de suas concepções de vida, amor, felicidade e feminino através de suas vestimentas. Transformou a dor em inspiração, o sofrimento em arte. Uma mulher admirável que rompeu barreiras morais de uma época.

E esse é foco de um projeto belíssimo de financiamento coletivo do qual tenho orgulho de ter participado: "Os vestidos de Frida", escrito por Christine Ferreira Azzi e com ilustrações de Juliana Fiorese. De maneira lúdica e voltado ao público infanto-juvenil, o livro traz a vestimenta de Frida como o fio condutor de uma viagem pelo mundo da arte, da moda e da reafirmação cultural. 

Capa do livro "Os vestidos de Frida"
O projeto me encantou por três razões: primeiro pela oportunidade de apresentar à minha filha a história e a obra de Frida, estimulando assim o interesse das novas gerações em não deixar se apagar essa história - as ilustrações da Juliana são belíssimas e chamam a atenção de qualquer criança para o colorido da arte. 

Segundo, por abordar a moda de uma maneira diferente e criativa, priorizando a simbologia e o significado daquelas roupas em detrimento de padronizações estéticas. Peço licença para reproduzir abaixo um trecho emblemático sobre o assunto:

"Para Frida, as roupas vestiam não apenas seu corpo, mas também sua alma. Elas eram uma forma de expressar sua opinião e sua maneira de ver o mundo. Os vestidos que ela usava são inspirados nas mulheres indígenas mexicanas, e representavam seu vínculo com a cultura da sua nação"

Ilustração da capa, por Juliana Fiorense.
Nesse sentido, a moda transpassa a noção de um padrão estético a ser supostamente seguido e nos mostra que a roupa se materializa em ideais de vida nos quais acreditamos. E essa é uma visão de moda muito interessante a passar aos nossos filhos, que nascem numa geração tão preocupada com o espetáculo da imagem.

Por fim, e como pode ser percebido pelo trecho acima citado, a delicadeza do texto chama atenção. Christine consegue falar sobre a Frida de uma maneira que não é triste, não nos reforça todo aquele sofrimento físico e emocional pelo qual a artista passou. É inevitável falar sobre isso ao lembrar de Frida, mas ela o faz de uma maneira excepcional, destacando a força de uma mulher que encontrou na moda, na poesia e na pintura uma maneira de viver, de se reafirmar. 

Trechos do livro "Os vestidos de Frida"
Em uma linguagem acessível tanto para crianças como para adultos - pode-se ler essa história para uma criança de quatro anos com a maior naturalidade, sem camuflar palavras ou expressões e sem ter que explicar sobre o que está escrito.

Ajudamos a financiar "Os Vestidos de Frida" e recebemos três exemplares aqui em casa - um para cada um. O de Maria Joana está embaladinho para quando ela aprender a ler. Mas é uma fase perfeita para que ela conheça essa história - sabe aquela fase da sua filha que ela só quer usar vestidos inspirada nas princesas que ela vê nos desenhos animados? É isso, chegou a hora de ampliar esses horizontes. Não tinha momento melhor para entrarmos em contato com essa obra. Vamos disseminar?   

Produtos do projeto "Os vestidos de Frida"


sexta-feira, 18 de julho de 2014

Entre paredes e jardins

Ontem, na hora de dormir, minha pequena bateu a cabecinha na parede. Coisa leve, mas desabafou:

- Culpa dessa parede dura! Não sei pra que ela fica aí, era melhor um jardim!

Concordo! As crianças são muito sábias, poderíamos trocar as paredes duras por jardins.

sábado, 12 de julho de 2014

Conversando sobre o ciclo da vida

Enquanto eu estudava na sala, minha pequena brincava no quarto com as bonecas e cantava:

"Mãezinha do céu
eu não sei rezar
eu só sei dizer
que eu quero te amar..."

E por aí vai. Uma música que minha avó cantava para nós e que canto para ela quando dormir é uma tarefa difícil. De repente, depois de uns segundos de silêncio, ela perguntou:

- Mãe, você vai pro céu?
- Sim, um dia mamãe vai pro céu.
- E eu vou te ver lá?
- Não sei... acho que sim, filha... um dia você vai também, então acho que a gente pode se encontrar lá.
- E quando você for pro céu... não vai mais voltar pra casa? Eu quero que você fique aqui comigo.

Então me levantei e sentei perto dela:

- Meu bem, todos vamos pro céu um dia. Quando eu era do seu tamanho, a minha vovó foi pro céu, tem muita gente legal lá. Todo mundo vai depois que cresce, mas isso não é ruim. Não é pra ficar triste, quem vai pro céu vira um anjo e protege todo mundo que precisa. Quando a mamãe for pro céu, vai ficar sempre com você, ajudando a dormir, a ter sonhos bons, a se proteger. Não fique pensando nisso, mas se pensar, não fique triste. Certo?
- Certo. Agora eu tenho que escovar os dentes, mãe.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Entre os prazos e o prazer

Férias escolares já virou sinônimo de dor de cabeça. Não que seja ruim, desagradável ou algo parecido o fato de seu filho ficar mais tempo em casa. Ao contrário, é uma oportunidade de dormir juntinhos até mais tarde, assistir mais animações com pipoca, passear um pouco mais, conhecer uns lugares, revisitar outros, conversar mais etc. O problema é que, como diz meu sobrinho de 8 anos, os pais não tiram férias ao mesmo tempo que os filhos.

Minha filha ficou de férias por um mês e exatamente no último mês que tenho pra preparar o texto da qualificação de mestrado. Exatamente no mês de provas do papai na faculdade. Resultado: renovação do estoque de desenhos e animações, enquanto a mamãe passa mais horas que o de costume no computador, tentando se concentrar em meio ao caos de uma criança de 3 anos que fica o dia todo em casa.

Me sinto mal por não conseguir cumprir os prazos de leitura e escrita como eu gostaria, me sinto mal por não ter tempo/dinheiro pra tirar minha filha da rotina em plenas férias, ir à praia, ao cinema, ao oceanário, visitar os amigos que têm filhos da mesma idade etc. Enfim, pedimos desculpas aos filhos por não presenteá-los com uma viagem de férias ou uma programação divertida no mês de julho, mas no fundo sabemos que cumprimos prazos, obrigações, compromissos, regras e cobranças que não estão ao nosso alcance.

Muitas vezes agimos como o personagem Guido, do filme "A vida é bela", tentando camuflar a realidade pra que eles não percebam as dores e os dilemas da vida real, as pressões do mundo adulto. É frustrante perceber a dificuldade entre conciliar os compromissos de estudo e trabalho e os desejos e demandas dos nossos filhos. Parece até pedir demais, porque aprendemos desde cedo que o "natural" é trabalhar 10 horas por dia e reservar os finais de semana para o prazer, o lazer.

Quando eu era criança, meu pai sempre estava trabalhando. Quando estava em casa, estava cansado do trabalho e tínhamos que deixá-lo em paz. Não conversávamos, não brincávamos, não interagíamos. Interagíamos aos domingos, nos jogos do Flamengo. Era a oportunidade de receber um pouco de atenção. Era ótimo assistir ao jogo do Flamengo, porque ele me explicava tudo e até vibrávamos juntos. Era o momento de ver meu pai sorrindo e conversando. Minha mãe sempre tinha muitos pratos pra lavar, roupas pra cuidar e, quando se sentava pra assistir à novela, dormia. Dormia de tão cansada. E pra não levar bronca, era melhor deixar dormir.

Desde que minha filha nasceu, sempre pensei que poderia fazer diferente. O mercado de trabalho me consumia, eram 12 horas entre um emprego e outro. Por alguns meses, ela passava mais tempo com o pai e com a avó do que comigo - não estamos falando de um ranking, mas via o tempo passar e não queria perder o crescimento de minha filha, momentos que não voltam. "Vou parar de trabalhar e tentar um mestrado, assim volto a estudar e fico mais tempo em casa". Apesar do aperto financeiro, foi a melhor decisão. Pessoalmente, estou realizada de voltar à universidade e perceber que posso passar menos tempo sendo robô e mais tempo aprendendo, lendo, estudando, sentindo que a caminhada segue para algum lugar. Passei a estudar para concurso e os frutos já estão brotando - algo impensável em outras épocas.

Mas é muita coisa pra ler, muita coisa pra estudar e escrever. Na primeira semana de férias, eu surtei. Logo vi que não conseguiria cumprir os prazos e fazer o que tinha estabelecido como meta pra mim mesma. Estressei e acabei colocando as mãos na cabeça. Quer saber de uma? Dane-se. Separei quatro horas por dia pra estudar tudo o que tinha que estudar e, como vi que não era possível ainda assim cumprir a meta, elenquei prioridades e agilizei meu próprio ritmo.

E assim estamos, dormindo até mais tarde, almoçando tarde, passando mais tempo no parquinho, conversando bastante, passeando de bicicleta e fazendo bobagens. Dessas que sonhamos em ficar fazendo om os filhos quando trabalhamos 10 horas por dia. Sei que poderia estar mais avançada na pesquisa, mas não parei de escrever. Apenas parei de me cobrar tanto. Próxima semana as férias acabam e é hora do "intensivão". Tenho duas semanas sozinha em casa. E já me sinto como Demi Moore em "Além do Limite da Honra" - me preparando pra guerra.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

"Podem o que quiserem"

Sempre que alguém pergunta "como será que fica a cabeça de uma criança criada por casais gays" ou "como elas vão lidar com o fato de verem seus coleguinhas na escola com pais e mães", eu penso que seria adequado responder-lhes com outra pergunta: "em que mundo você vive?" 

Pois bem, eu posso dizer o mundo em que vivo. Eu e Rafael temos 29 anos e somos pais de uma menina de 3. Desde que ela nasceu, foi inserida naturalmente no nosso círculo de amizades e convivência, que inclui militantes de esquerda, grupos feministas, movimentos negros, praticantes de religiões de presença africana, professores e colegas universitários, casais gays, mães e pais solteiros, famílias com crianças adotadas, entre outros perfis e estilos de vida que servem de rótulo constante para quem tem prazer em estigmatizar.

Nunca precisamos ensinar a nossa filha que ela deve ter orgulho do cabelo cacheado e volumoso, porque grande parte de nossos amigos ostentam grandes blackpowers, dreadlocks (inclusive o pai) e outros penteados afro. Ela se recusa a amarrar ou "domar" o cabelo, mesmo sob a insistência gritante de vários parentes em eventos de família. "Não, obrigada", ela responde a quem brada: "Ajeite o cabelo dessa menina". É claro que Maria Joana não sabe ainda a importância do cabelo para a reafirmação de uma identidade historicamente oprimida, ela quer simplesmente usá-lo como muitos ao seu redor usam: livremente. Mas isso já é um grande passo para poder viver na "geração chapinha".

Da mesma forma, nunca precisamos ensiná-la o que é um casal gay. Não é preciso criar explicações para o que é natural. Casais são casais e ponto, não há rotulações. Então, ela nunca fez nenhum questionamento, nunca demonstrou tabu ou estranhamento ao ver um casal gay, porque para ela é uma relação como qualquer outra - assim como para nós. Durante um ano, moramos em uma república estudantil e no quarto ao lado do nosso, dormia um casal homoafetivo. Ela tinha entre 1 e 2 anos nessa época e sempre soube que eles eram companheiros. 

Ana Cláudia e Cecília, com os filhos adotivos:
Laura, Ezequiel e André.

Ao contrário do que prega o senso comum, ela nunca presenciou pornografia, palavras obscenas, gestos sexuais ou algo do tipo. Éramos uma família e ninguém nunca precisou explicar para ela: "Olha, sabe fulano e cicrano? São gays, eles são namorados". Quando um chegava, ela perguntava pelo outro. Gostava dos dois, assim como gostava de brincar com os dois. Quando meus pais se separaram, ela passou a ouvir conversas paralelas na casa dos avós e um dia perguntou a meu pai: "Vovô, cadê seu namorado?". Meu pai se ofendeu e todos reagiram com estranhamento. Mas, ao contrário do que pediam os olhares indignados da família, não briguei com ela. Expliquei que o vovô não gostava de ser questionado sobre seu namorado ou sua namorada. Meu pai é desses senhores que jamais aceitariam um casal gay, quanto mais ser um. Mas, para mim, é perfeitamente normal que ela pense que o vovô possa ter um namorado e eu não queria dizer a ela que de alguma forma ela estava errada em perguntar isso. 

Da mesma forma, estávamos um dia chegando ao ponto de ônibus, quando duas amigas se despediram com um abraço e uma delas subiu no ônibus. Ela se virou para a moça que ficou no ponto e perguntou: "Sua namorada vai pra onde?". A menina respondeu que eram amigas, e que a amiga estava indo para casa. Expliquei que não são só namorados ou namoradas que trocam carícias e o ponto positivo dessa cena um pouco constrangedora foi perceber que ela tinha em sua mente um conceito de naturalidade que incluía relações homoafetivas, ou seja, que ver e conviver com casais gays era algo completamente natural para ela. 

Mas não podemos colocar nossos filhos na bolha do nosso estilo de vida. Na escola, no parquinho do condomínio, ela aprende que "o certo é homem casar com mulher" e já chegou ao ponto de pedir insistentemente que eu e o pai nos casássemos, porque "ela quer muito". Mesmo explicando para ela que mamãe não gosta de se casar e não vai se casar, ela responde que "vocês têm que se casar". Eu chamo isso de "ofensiva moral". É o processo através do qual os nossos filhos chegam em casa "contaminados" pelo bombardeio moralista que tanto criticamos. Isso vem de espaços institucionais de moral conservadora, como a escola, a família etc. Não há como evitar, mas combatemos. 

E aqui assumo um erro: por ter percebido em algum momento que, para ela, não havia tabus, "baixei a guarda" e paramos de mostrar exemplos, de conversar sobre isso... deixamos as águas do rio correrem e nos esquecemos que sempre vai existir a ofensiva moralista para desconstruir tudo aquilo que ensinamos. Mas somos insistentes. Mamãe e papai nunca vão se casar e homens podem se casar com homens e mulheres podem se casar com mulheres. Ou podem namorar, sem casar. "Podem o que quiserem", é uma frase que procuro usar sempre em diálogos que envolvem relações de gênero. 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

De qual lado está o assustador?

O corpo humano é tão frágil e tem seus limites como qualquer tecido que a qualquer momento pode desfiar ou se romper. De modo que, a todo tempo nos deparamos com situações e histórias que envolvem pessoas tentando se reerguer e normalizar suas vidas depois de acidentes ou tragédias - ou tentando adaptar seus corpos para isso. Supõe-se que esse tenha sido o pensamento de Kelly Mullins ao levar sua filha de 3 anos, Victoria, para jantar em um restaurante alguns dias depois de a menina ter sido submetida a várias cirurgias para recuperar o máximo possível de sua face após ela ter sido mordida por três cachorros na cidade onde mora, no Mississipi, EUA.

Depois do acidente, a garotinha "perdeu a visão do olho direito, quebrou a mandíbula, o queixo e o nariz e teve cortes profundos na bochecha". Depois de uma tragédia como essa, o que resta à família de uma criança de três anos além de acompanhar os tratamentos e procedimentos cirúrgicos necessários à recuperação física e psicológica da menina? Retomar aos poucos a rotina, suponho. O cotidiano de uma criança de 3 anos, que está fortalecendo vínculos com a família, parentes e amigos, começando a descobrir o mundo, as pessoas, a maneira como as coisas funcionam e o que pode lhe trazer prazer, suponho eu como mãe.

A pequena Victoria
Então, o que faz uma mãe retirar de casa sua filha recém-operada, mesmo se alimentando apenas por um tubo, para ir comer em um restaurante? Por que ela não pediu a comida por telefone? A meu ver, a resposta é muito simples: proporcionar à filha o direito de retomar a sua vida, a sua rotina, os seus hábitos, ajudá-la a perceber que é possível se recuperar de um acidente e de várias cirurgias mantendo programas familiares ou hábitos de lazer que se mantinham antes ou até mesmo coisas novas. Mas parece que é muito difícil para alguns terem a sensibilidade de perceber isso.

Segundo matéria de O Globo, "Victoria saiu com a sua mãe para jantar em um restaurante da rede de fast food KFC. Após ter de tomar chá gelado e ingerir purê de batata por um tubo, a menina foi interpelada por um funcionário do estabelecimento, que pediu para que as duas se retirassem do local. O motivo, segundo ele, era que a cena estava "incomodando" outros clientes".

Eu não estava lá para ver a cena, mas duvido que existisse ali algo além de uma cena familiar, em que uma mulher ajuda a sua filha de 3 anos recém-operada a comer, porque é óbvio que isso requer mais cuidado do que o usual. Pode até ser uma cena inusitada ou que chame a atenção, mas o olhar "assustado" que se parece direcionar a uma criança recém-acidentada e operada denuncia a maneira como boa parte de nós ainda vê outros seres humanos com limitações físicas - de maneira inquisidora, como se estivesse diante de uma "aberração", uma coisa "abjeta", "não-humana". E que por tudo isso, "deve estar longe de meus olhos e da minha presença".

Quem de nós pensa o quanto é duro para uma mãe ter que explicar à sua filha que as pessoas querem ela longe dali porque é assustador que ela tente retomar a sua rotina e seus hábitos na frente daqueles que se acham perfeitos ou livres de qualquer limitação física, de qualquer deformação que possa vir a ocorrer após um acidente? Assustador é que, ao invés de a empresa, através do funcionário, ter ido interpelar a família para expulsá-la do local, não tenha questionado se havia ali a necessidade de um atendimento especial ou personalizado, ou se elas precisariam de mais alguma coisa além o que já havia sido oferecido como atendimento.

Então vemos questionamentos do tipo "Se a menina estava com o rosto daquele jeito, por que a mãe não pediu comida por telefone e comeu com ela em casa?". Será que é essa a pergunta que devemos nos fazer? Quando vejo esse tipo de reação a um episódio como esse, constato que é cada vez mais difícil a luta de quem tenta viver e criar filhos em meio a uma humanidade tão desumana e tão desanimadora.