Muito comovente o Jornal Nacional de ontem, 18 de julho de 2013. Não
pude cronometrar o tempo dedicado ao
tão alardeado vandalismo sofrido pelos prédios de lojas e vidros de
bancos no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro. Mas foi
impossível não perceber a prioridade absoluta à cobertura
assustadoramente hegemônica do fato. Digo assustadora por que
realmente tenho medo de viver em uma sociedade onde tijolos e vidros
de bancos comovem mais do que sofrimentos causados a vidas humanas.
Há mais de um ano, o vigilante norte-americano George Zimmerman matou um adolescente negro que caminhava na rua, à noite, com um capuz na cabeça. Mas foi absolvido essa semana pelo juri da Flórida. Embora o adolescente estivesse desarmado, o juri considerou que o vigilante realmente agiu em legítima defesa. Em Los Angeles, 14 manifestantes indignados com a absolvição foram presos. O assassino foi absolvido, a população indignada foi presa. Alguém se comove? Claro que não, o que é um adolescente anônimo negro assassinado friamente em detrimento de vidros de empresas que patrocinam as emissoras de televisão?
Não
tão longe daqui, no Chile, uma criança de 11 anos está grávida do
padastro, que, segundo seu próprio depoimento, a estuprava desde que
ela tinha nove anos. Nossa, e a mãe dela, fez o quê? Nominou a
violência física, psicológica e emocional de “relações
consensuais” entre vítima e estuprador e afirmou que todos estavam
sendo injustos com seu marido. Então vamos recorrer ao Estado, ele
certamente protege as crianças. “[A garota] surpreendeu a todos
com sua profundidade e maturidade ao dizer que, apesar da dor causada
pelo homem que a estuprou, ela quer ter e cuidar do bebê",
declarou o presidente do Chile, Sebastian Pinera. Maturidade ou falta de escolha de
uma criança que não tem apoio ou proteção familiar e
institucional? Quantos viram essa notícia ser alardeada pelos veículos da imprensa? Alguém se comove?
O
nome da paranaense Tayná Adriane da Silva, 14 anos, também não é tão famoso e
poderoso como o do banco Itaú ou do Banco do Brasil, mas carrega
consigo um 'mistério' chocante. Pouco depois de quatro trabalhadores
de um parque serem presos sob a acusação de terem estuprado e
assassinado a adolescente em Colombo, seu corpo foi encontrado em um
matagal não muito longe dali. A Revista Veja, não satisfeita em julgar e condenar, anexou ainda na reportagem divulgada um histórico de casos que assustaram o Brasil pela crueldade envolvida.
O que dizem os comentários nas redes
sociais, as pessoas nos pontos de ônibus e bares da vida, estimuladas por reportagens como a da Revista Veja? “Mata os
quatro”, “Bate até matar”. Mas a mesma mídia que julga e pune
foi obrigada a noticiar posteriormente que o exame de DNA do sêmen
encontrado no corpo da garota não conferia com o de nenhum dos
quatro. E agora? Agora descobre-se que policiais e nomes não
divulgados estão envolvidos em uma verdadeira armação que envolve
a morte de uma adolescente, práticas de tortura contra pessoas inocentes para que elas assumissem a 'culpa', verdadeiros culpados
soltos e protegidos pelo sigilo da polícia e duas mulheres agora
perseguidas: Joice Hasselmann, a jornalista que divulgou o vazamento
dessas informações até então mantidas em sigilo pela cúpula da
Secretaria de Segurança Pública do Paraná, e a perita Jussara
Joeckel, que chegou a ser pressionada por um policial civil a
divulgar “resultado do exame com laudo inconclusivo”. Alguém se
comove com Tayná, morta aos 14 anos? Alguém se comove com duas
mulheres ameaçadas pela polícia por fazerem seu trabalho?
Alguém se comove com quatro homens que foram violentamente
torturados, expostos pela mídia e presos injustamente?
A
tentativa de omissão do Estado do Paraná e da mídia nacional
quanto ao verdadeiro culpado do caso Tayná não tem como intenção
apenas proteger nomes poderosos e influentes envolvidos no crime. Ela
reproduz uma lógica de criminalização de trabalhadores pobres (os
guardas do parque) e de silêncio
com relação às mulheres vítimas de violência. Quem está
realmente preocupado em solucionar o caso de uma adolescente anônima
que perdeu sua vida quando ia para casa em ruas escuras e desertas de
uma cidade? “Quem mandou caminhar pelo parque à noite? Sabia o
risco que corria”, é isso que muitas vítimas de violência sexual
ouvem ao chegar em uma delegacia para prestar queixa, ao chegar em um
instituto para fazer exame de corpo de delito, ao simplesmente
pedir socorro. Pedir socorro a quem, quando não se é proprietária
de um banco ou de uma grande loja no Leblon?
Mulheres
são estupradas e assassinadas todos os dias em nosso território tão
preocupado com “vandalismos” e “arruaças”, mas são
silenciadas pelo descaso da imprensa, pela omissão do Estado e pela
conivência de uma sociedade que prefere culpabilizar vítimas de
violência sexual a ouvi-las, protegê-las, apoiá-las. Alguém
se comove? Índios estão sendo dizimados e destituídos de direitos
em todo o território nacional, índias são estupradas por jagunços
de grandes fazendeiros. Alguém se comove? Pobres e negros têm suas
casas arrombadas e invadidas por policiais nas favelas das grandes
cidades. Alguém se comove? Pelo menos 10 pessoas foram mortas em uma
operação do Bope na favela da Maré há menos de um mês. Alguém
se comove? Em pleno século XXI, atletas cubanas são chamadas por
brasileiros de “negras de merda” ao jogarem em Santa Catarina.
Alguém se comove com o racismo? Mais de 20 crianças indianas foram internadas por
comerem merenda envenenada na escola em que estudam. Alguém se comove com crianças indianas?
A
Revista TPM de julho escolheu como tema principal de suas páginas a
violência contra a mulher. Entrevistou a blogueira Lola Aronovich, da página "Escreva, Lola, escreva",
uma das mais acessadas sobre feminismo e violência contra a
mulher.
Alguém se comove com os depoimentos das vítimas? A Carta Capital
dessa semana destaca a falência do sistema de saúde pública no
país e uma passeata que lembra os 20 anos da chacina da Candelária. Alguém se comove? A IstoÉ aborda o crescimento de mortes e assaltos em bancos
no país. Alguém se comove com tantas mortes evitáveis? A Le Monde
desse mês traz uma incrível reportagem sobre a geopolítica da
saúde e a colonização moderna da Europa sobre a África (que
muitos chamam de “investimentos econômicos”). Alguém se comove
com africanos eternamente dependentes e colonizados por potências
europeias?
Ontem, a Radio Agência NP e o Jornal Brasil de Fato destacaram dados do Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, segundo o qual há um crescimento de 207,9% de mortes não naturais e violentas entre os jovens brasileiros, entre os anos de 1980 e 2011. O Mapa destaca os jovens negros como maioria das vítimas de assassinatos. Alguém se comove com jovens negros que não são donos de bancos e que sequer podem pagar por uma publicidade nos intervalos do Jornal Nacional? Na última segunda-feira, o Jornal Cinform divulgou uma reportagem sobre estupros. Alguém se comove com os depoimentos das vítimas e de seus familiares?
Ontem, a Radio Agência NP e o Jornal Brasil de Fato destacaram dados do Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, segundo o qual há um crescimento de 207,9% de mortes não naturais e violentas entre os jovens brasileiros, entre os anos de 1980 e 2011. O Mapa destaca os jovens negros como maioria das vítimas de assassinatos. Alguém se comove com jovens negros que não são donos de bancos e que sequer podem pagar por uma publicidade nos intervalos do Jornal Nacional? Na última segunda-feira, o Jornal Cinform divulgou uma reportagem sobre estupros. Alguém se comove com os depoimentos das vítimas e de seus familiares?
Poderíamos
passar um dia inteiro (ou mais) destacando casos de ataque à vida
humana reproduzidos rotineiramente em cada país desse mundo moderno,
que tanto se preocupa com a destruição de cimentos, tijolos e
vidros de grandes empresas no bairro nobre do Leblon. As lágrimas de
Patrícia Poeta, construídas sobre matérias que destacam um ataque
ao patrimônio privado de ricos empresários lucrando sobre uma
sociedade fortemente desigual me assustam. Me assustam muito mais do
que lixeiras arremessadas e pessoas mascaradas. Me assustam muito
mais do que o cara que vende drogas na esquina do meu bairro. Me
assusta viver em uma sociedade onde se derrama muito mais lágrimas
por bancos quebrados do que por vidas violentadas, mulheres e
crianças cotidianamente estupradas, pobres e negros assassinados
como traques de bebé estourados no São João. Todos se reduzindo a estatísticas. Me assusta
criar uma filha em uma sociedade que vela por empresas quebradas, mas
não se comove com histórias de vida. Tenho muito medo.
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