sexta-feira, 19 de julho de 2013

Vidros de bancos valem mais do que vidas humanas?

Muito comovente o Jornal Nacional de ontem, 18 de julho de 2013. Não pude cronometrar o tempo dedicado ao tão alardeado vandalismo sofrido pelos prédios de lojas e vidros de bancos no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro. Mas foi impossível não perceber a prioridade absoluta à cobertura assustadoramente hegemônica do fato. Digo assustadora por que realmente tenho medo de viver em uma sociedade onde tijolos e vidros de bancos comovem mais do que sofrimentos causados a vidas humanas.

Há mais de um ano, o vigilante norte-americano George Zimmerman matou um adolescente negro que caminhava na rua, à noite, com um capuz na cabeça. Mas foi absolvido essa semana pelo juri da Flórida. Embora o adolescente estivesse desarmado, o juri considerou que o vigilante realmente agiu em legítima defesa. Em Los Angeles, 14 manifestantes indignados com a absolvição foram presos. O assassino foi absolvido, a população indignada foi presa. Alguém se comove? Claro que não, o que é um adolescente anônimo negro assassinado friamente em detrimento de vidros de empresas que patrocinam as emissoras de televisão?

Não tão longe daqui, no Chile, uma criança de 11 anos está grávida do padastro, que, segundo seu próprio depoimento, a estuprava desde que ela tinha nove anos. Nossa, e a mãe dela, fez o quê? Nominou a violência física, psicológica e emocional de “relações consensuais” entre vítima e estuprador e afirmou que todos estavam sendo injustos com seu marido. Então vamos recorrer ao Estado, ele certamente protege as crianças. “[A garota] surpreendeu a todos com sua profundidade e maturidade ao dizer que, apesar da dor causada pelo homem que a estuprou, ela quer ter e cuidar do bebê", declarou o presidente do Chile, Sebastian Pinera. Maturidade ou falta de escolha de uma criança que não tem apoio ou proteção familiar e institucional? Quantos viram essa notícia ser alardeada pelos veículos da imprensa? Alguém se comove?

O nome da paranaense Tayná Adriane da Silva, 14 anos, também não é tão famoso e poderoso como o do banco Itaú ou do Banco do Brasil, mas carrega consigo um 'mistério' chocante. Pouco depois de quatro trabalhadores de um parque serem presos sob a acusação de terem estuprado e assassinado a adolescente em Colombo, seu corpo foi encontrado em um matagal não muito longe dali. A Revista Veja, não satisfeita em julgar e condenar, anexou ainda na reportagem divulgada um histórico de casos que assustaram o Brasil pela crueldade envolvida. 

O que dizem os comentários nas redes sociais, as pessoas nos pontos de ônibus e bares da vida, estimuladas por reportagens como a da Revista Veja? “Mata os quatro”, “Bate até matar”. Mas a mesma mídia que julga e pune foi obrigada a noticiar posteriormente que o exame de DNA do sêmen encontrado no corpo da garota não conferia com o de nenhum dos quatro. E agora? Agora descobre-se que policiais e nomes não divulgados estão envolvidos em uma verdadeira armação que envolve a morte de uma adolescente, práticas de tortura contra pessoas inocentes para que elas assumissem a 'culpa', verdadeiros culpados soltos e protegidos pelo sigilo da polícia e duas mulheres agora perseguidas: Joice Hasselmann, a jornalista que divulgou o vazamento dessas informações até então mantidas em sigilo pela cúpula da Secretaria de Segurança Pública do Paraná, e a perita Jussara Joeckel, que chegou a ser pressionada por um policial civil a divulgar “resultado do exame com laudo inconclusivo”. Alguém se comove com Tayná, morta aos 14 anos? Alguém se comove com duas mulheres ameaçadas pela polícia por fazerem seu trabalho? Alguém se comove com quatro homens que foram violentamente torturados, expostos pela mídia e presos injustamente?

A tentativa de omissão do Estado do Paraná e da mídia nacional quanto ao verdadeiro culpado do caso Tayná não tem como intenção apenas proteger nomes poderosos e influentes envolvidos no crime. Ela reproduz uma lógica de criminalização de trabalhadores pobres (os guardas do parque) e de silêncio com relação às mulheres vítimas de violência. Quem está realmente preocupado em solucionar o caso de uma adolescente anônima que perdeu sua vida quando ia para casa em ruas escuras e desertas de uma cidade? “Quem mandou caminhar pelo parque à noite? Sabia o risco que corria”, é isso que muitas vítimas de violência sexual ouvem ao chegar em uma delegacia para prestar queixa, ao chegar em um instituto para fazer exame de corpo de delito, ao simplesmente pedir socorro. Pedir socorro a quem, quando não se é proprietária de um banco ou de uma grande loja no Leblon?

Mulheres são estupradas e assassinadas todos os dias em nosso território tão preocupado com “vandalismos” e “arruaças”, mas são silenciadas pelo descaso da imprensa, pela omissão do Estado e pela conivência de uma sociedade que prefere culpabilizar vítimas de violência sexual a ouvi-las, protegê-las, apoiá-las. Alguém se comove? Índios estão sendo dizimados e destituídos de direitos em todo o território nacional, índias são estupradas por jagunços de grandes fazendeiros. Alguém se comove? Pobres e negros têm suas casas arrombadas e invadidas por policiais nas favelas das grandes cidades. Alguém se comove? Pelo menos 10 pessoas foram mortas em uma operação do Bope na favela da Maré há menos de um mês. Alguém se comove? Em pleno século XXI, atletas cubanas são chamadas por brasileiros de “negras de merda” ao jogarem em Santa Catarina. Alguém se comove com o racismo? Mais de 20 crianças indianas foram internadas por comerem merenda envenenada na escola em que estudam. Alguém se comove com crianças indianas?

A Revista TPM de julho escolheu como tema principal de suas páginas a violência contra a mulher. Entrevistou a blogueira Lola Aronovich, da página "Escreva, Lola, escreva", uma das mais acessadas sobre feminismo e violência contra a mulher. Alguém se comove com os depoimentos das vítimas? A Carta Capital dessa semana destaca a falência do sistema de saúde pública no país e uma passeata que lembra os 20 anos da chacina da Candelária. Alguém se comove? A IstoÉ aborda o crescimento de mortes e assaltos em bancos no país. Alguém se comove com tantas mortes evitáveis? A Le Monde desse mês traz uma incrível reportagem sobre a geopolítica da saúde e a colonização moderna da Europa sobre a África (que muitos chamam de “investimentos econômicos”). Alguém se comove com africanos eternamente dependentes e colonizados por potências europeias? 

Ontem, a Radio Agência NP e o Jornal Brasil de Fato destacaram dados do Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, segundo o qual há um crescimento de 207,9% de mortes não naturais e violentas entre os jovens brasileiros, entre os anos de 1980 e 2011. O Mapa destaca os jovens negros como maioria das vítimas de assassinatos. Alguém se comove com jovens negros que não são donos de bancos e que sequer podem pagar por uma publicidade nos intervalos do Jornal Nacional? Na última segunda-feira, o Jornal Cinform divulgou uma reportagem sobre estupros. Alguém se comove com os depoimentos das vítimas e de seus familiares?

Poderíamos passar um dia inteiro (ou mais) destacando casos de ataque à vida humana reproduzidos rotineiramente em cada país desse mundo moderno, que tanto se preocupa com a destruição de cimentos, tijolos e vidros de grandes empresas no bairro nobre do Leblon. As lágrimas de Patrícia Poeta, construídas sobre matérias que destacam um ataque ao patrimônio privado de ricos empresários lucrando sobre uma sociedade fortemente desigual me assustam. Me assustam muito mais do que lixeiras arremessadas e pessoas mascaradas. Me assustam muito mais do que o cara que vende drogas na esquina do meu bairro. Me assusta viver em uma sociedade onde se derrama muito mais lágrimas por bancos quebrados do que por vidas violentadas, mulheres e crianças cotidianamente estupradas, pobres e negros assassinados como traques de bebé estourados no São João. Todos se reduzindo a estatísticas. Me assusta criar uma filha em uma sociedade que vela por empresas quebradas, mas não se comove com histórias de vida. Tenho muito medo.


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Questões de morte, etnia e gênero em "O Rei Leão"

Nunca me conformei com a morte de Mufasa. Sempre achei que se a gente pudesse falar com os criadores do 'Rei Leão' e dizer a eles o quanto aquela cena nos marcou, eles teriam voltado atrás e teriam deixado o Mufasa vivo - apenas ferido depois da debandada. Pensava o quanto era injusto Simba perder um pai tão bom e companheiro sendo tão pequenininho e depois ainda ter que se virar sozinho.

Depois de muitos anos e já mãe, me lembrei do Rei Leão e decidi baixar pra Maria Joana assistir. Na primeira vez que ela viu, observei atentamente sua reação à morte de Mufasa e percebi que ela ficou muito sentida. Mas não falou nada. A partir de então ela queria ver 'O Rei Leão' dia e noite. Mas, depois de algumas repetidas vezes, quando começava a fatídica cena, ela dizia: "Mamãe, não gosto mais desse filme". Então eu adiantava o DVD para a cena em que Pumba e Timão encontram Simba desacordado e perdido. E até hoje é o mesmo processo: ao começar a cena, ela já me chama com cara de choro pra que eu corte a tragédia do imaginário dela.

A fatídica cena da morte de Mufasa
Sempre acho que as animações e suas representações são grandes aliadas da pedagogia e do diálogo com as crianças. Conversando com elas sobre o que elas enxergam nas cenas, podemos perceber melhor sobre suas visões de mundo, de relações etc. Entre os desenhos a que ela assiste, o Rei Leão se destaca por conseguir transmitir a ela uma série de valores riquíssimos: a relação de amizade e admiração entre Simba e o pai, a coragem de lutar pela sua terra, a união das leoas num momento de fome e miséria, o respeito mútuo entre os animais (o maior ensinamento de Mufasa a Simba), a cadeia alimentar etc. E, claro, o estilo de vida Hakuna Matata.

No entanto, em se tratando de animações, precisamos ir um pouco além do fácil aparente e refletir sobre elementos mais subjetivos. Na trilogia do Rei Leão, outras coisas também me deixam inquieta, mas não consigo ainda dialogar com minha filha sobre isso: o que mais me incomoda é a relação de etnia com os conceitos de bem e mal. Enquanto Mufasa é claro, Scar, o malvado, é o único leão negro (no Rei Leão II, o filho dele é um leão negro, vivendo na terra dos exilados e proibido de entrar nas terras do reino). Enquanto o território é regido por Scar, tudo vive na escuridão; já quando Simba retorna para assumir o trono, "o reino dos bons" é bastante iluminado pelo sol. Seja como cor do pelo (ou da pele) ou do ambiente de vida, a dicotomia bem x mal está bastante associada a outra dicotomia: o claro x o escuro.

Cenas protagonizadas por Scar são escuras e sombrias

As cenas de Mufasa são claras e bem iluminadas pelo sol
Outro ponto que me inquieta é a questão de gênero. Todos sabemos que são as leoas as responsáveis pela caça (no mundo real). Já no desenho, é Mufasa quem ensina Simba a caçar, enquanto as leoas têm um comportamento dócil, submisso e permissivo - muito diferente de qualquer cena que vemos em canais como o Discovery Channel. Contraditoriamente, apenas no reino de Scar, às leoas é delegada a tarefa da caça. Um filme não são apenas representações de mundo - são representações imaginárias das pessoas que o criam, com suas visões de mundo inseridas nesse processo.

Além disso, se pensarmos que os leões claros e bem alimentados vivem num reino próspero e amplamente iluminado, enquanto os leões escuros (como o filho de Scar e sua mãe) vivem na terra dos exilados, afastados das terras dos reinos e sem tanta possibilidade de alimentação, será que essa relação não tem nada a ver com a relação entre pobreza e a marginalidade? Existe uma diferenciação de classes na história do Rei Leão e ela é relativamente nítida.

Já o Rei Leão II traz uma nova roupagem. Além de ter uma fêmea na sucessão do trono (Kyara), a filha de Simba constroi uma relação de união com Kovu (o filho de Scar), dissolvendo assim a fronteira simbólica que separa as terras do reino e a terra dos exilados - mostrando talvez que homens e mulheres, branco e negros, ricos e pobres podem dissolver suas fronteiras e viver em harmonia. Será? Para que as diferenças sejam dissolvidas, uma das partes há que ceder. Em uma relação desigual de forças, quem sempre cede em prol da harmonia?

Kyara conhece Kovu na sombria terra dos exilados
Para que Kyara e Kovu pudessem ficar juntos, Kyara foi morar na terra dos exilados ou Kovu teve que se submeter a ser aceito nas terras do reino? Os desenhos animados não são apenas imagens e sons coloridos que usamos para que nossos filhos se distraiam. São representações ideológicas subjetivamente inseridas em cada cena, em cada cor, em cada relação, em cada música tocada em determinado momento. Se nos preocupamos com a forma como as crianças se relacionam e vivem em sociedade, é preciso refletir sobre os valores e ideias que eles apreendem através das animações e de que forma podemos dialogar com eles sobre isso.

Acho que ainda não é tempo de falar sobre esses elementos menos perceptíveis com minha filha, que tem apenas 2 anos. Procuro apenas observar a compreensão dela através do que ela fala sobre situações parecidas etc. E então vamos conversando.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

"Os animais são nossos amiguinhos"

Hoje à tarde, saíamos do condomínio e, de dentro do carro avistamos a uma certa distância uma porca que parecia estar prenha e um filhote ao lado dela - há um criadouro próximo ao condomínio e de vez em quando eles saem para passear. Pedi a Rafa que fosse mais devagar pra que Maria Joana pudesse observar melhor a mãe porca e seu filhinho passeando. Ela ficou encantada, deu boa tarde, acenou e depois deu tchau. E, como sempre fala quando vê um bicho na rua: "Cuidado, amiguinhos...". 

Fiquei impressionada com o tamanho da porca e não pude conter o bom e velho comentário carnívoro - já sei, tem gente pegando as pedras pra jogar em mim, mas na verdade saiu como um espirro. "Imagine quanta calabresa daria pra um churrasco...". Foi apenas uma questão de minutos para o arrependimento. 

- Nãããããooooo, mãe.... - sacudindo negativamente a cabeça.
- Não o quê?
- Você não pode comer a porquinha no seu churrasco, ela vai ficar com medo.
- É mesmo? 
- É sim! Não pode. Ela não vai gostar que você coma ela, porque ela tá com o filhinho dela, porque ela vai ter medo, porque ela é nossa amiguinha. Os animais são nossos amiguinhos.. e você não pode fazer isso.
- Tudo bem (segurando o riso). Me perdoe, não vou mais comer a porquinha. 

Rafa sorriu e disse que todas as crianças de certa forma eram vegetarianas porque, se aquelas que comem carne, soubessem associar o alimento ao bicho que elas tanto idolatram, deixariam de comer a carne. E, fingindo não estar prestando atenção na conversa, ela ainda fechou com chave de ouro esse momento tão revelador de minha desumanidade. 

- Tá vendo, mãe? Não pode... são nossos amiguinhos. Né, pai?
- É sim...

Lembrei daquele vídeo em que o garotinho se recusa a comer a moqueca de polvo porque diz que os animais são amigos e que ele os prefere "felizes e em pé". A diferença é que Maria Joana é a criança mais carnívora que conheço, sabe o que é carne de boi, frango e porco e mesmo assim come. Mas agora eu aprendi que uma coisa é ela ver a carne pronta no prato, e outra é ela ver o animal vivo e se mexendo.

Por coincidência (ou não), li há alguns dias um texto do Marshall Sahlins, onde ele busca abordar a cultura norte-americana a partir do papel central da carne em sua alimentação e o tabu dos animais domésticos americanos. Para ele, a comestibilidade está inversamente relacionada com a humanidade - ou seja, quanto mais próximo um animal está da nossa condição de sujeito, teremos menos vontade de comê-los. Cachorros e cavalos, por exemplo, são domesticados e ganham nomes, então não são comestíveis. Mas os bois, frangos e porcos não são "membros da família", todos já aceitam sua condição de "comida". Uma reflexão interessante...

Óbvio que eu não iria falar nada disso a Maria Joana. Limitei-me apenas a me retratar diante do seu olhar fuzilador e da sua lição de moral. E não se toca mais no assunto. 

segunda-feira, 8 de julho de 2013

"Você não é minha mãe!"

Quando minha filha nasceu, tive medo de várias coisas. Entre vários mais sérios, um deles era ouvir "Você não é minha mãe" ou "Não gosto mais de você" em um momento de raiva. Achava que, quando isso acontecesse, iria sofrer horrores uma possível rejeição. Eis que ontem, pela primeira vez, ouvi essas mesmas palavras. Depois de uma maratona de desenhos animados, já estava tarde quando a chamei pra dormir. Ela se recusou e então desliguei a televisão e não dei mais chance de escolha.

Foi quando ela abriu o berreiro e em meio ao choro disse essas mesmas palavras. E não quis me dar boa noite. Ao contrário do que eu imaginava, não sofri nada. Até achei engraçado. Comecei a rir e perguntei:

- Então eu não sou sua mãe?
- Não!
- E você saiu da barriga de quem?
- De ninguém! Ninguém é minha mãe!
- Tá bom. Então quando você tiver com fome, faz sua comida sozinha, já que não tem mãe, né...
- Eu peço a meu pai. Sou filha só dele! E não gosto de você nunca mais!

Tive dificuldade de conter o riso, quando ela pegou uma revistinha e disse:

- E leia essa história pra mim! Agora!
- Não leio histórias pra quem não pede por favor e com carinho. Além disso, não sou sua mãe mesmo... 
- Leia, por favor...
- Mas eu não sou sua mãe. Você nem tem mãe... leia sozinha.
- Eu não sei ler sozinha... você é minha mãe, sim. Leia pra mim, mãe. Por favor.
- E voltou a gostar de mim? 
- É, mãe.. eu te amo.

E como toda criança interesseira, abriu um sorrisão, deu um grande beijo e ficou esperando a história. Lembrei de quando eu falava essas mesmas coisas com a minha mãe. Mas acho que não fui tão precoce quanto Maria Joana, que ainda vai fazer três anos.