quarta-feira, 28 de maio de 2014

Não foi você

Pela primeira vez em dois anos, caímos da bicicleta eu e Maria Joana (em sua cadeirinha). Tinha ido buscá-la na escola e, ao desviar de um carro parado na rua, o peso da mochila dela forçou a cestinha para o lado e eu acabei perdendo o equilíbrio. O guidom entortou e então ficou difícil levantar a bicicleta e tirá-la da cadeirinha ao mesmo, enquanto ela chorava. Mas deu para verificar rapidamente se havia algum machucado mais sério. Apenas alguns arranhões de leve.

Estávamos próximas a um ponto de ônibus com várias pessoas esperando, e ninguém saiu da sua rotina milimetricamente calculada para nos ajudar. Meu nervosismo diminuiu quando vi dois adolescentes correndo da esquina para nos ajudar. Eles então seguraram a bicicleta para que eu a retirasse da cadeirinha, enquanto uma senhora com duas crianças pequenas nos ajudou a recolher as coisas do chão.

Pedi para que eles encostassem a bicicleta e peguei ela no colo, tentando acalmá-la. Com muito esforço, consegui engolir o choro de medo e ao mesmo tempo de alívio, porque eu sabia que se ela me visse chorando, ficaria nervosa. Estávamos perto do ponto de ônibus e por ser uma rua onde costumam passar cavalos também, fiquei com medo de ela ser atropelada no momento da queda, mas felizmente isso não aconteceu. Após alguns minutos, ela já estava tranquila, então a coloquei de volta na cadeirinha, garanti que a queda não iria se repetir e seguimos adiante, enquanto eu empurrava a bicicleta de lado.

No meio do caminho, parei a bicicleta e pedi desculpas pela queda e por tê-la machucado. Ela então tirou os dedinhos da boca e respondeu: "Não foi você não, mãe, foi a bicicleta", enquanto esticava a mãozinha pra me alisar. Naquele momento, era eu que estava sendo consolada e o choro que eu tinha engolido antes acabou descendo. Voltamos para casa enquanto eu me perguntava como cabia tanta compreensão, tanta paciência e sabedoria em um ser tão pequenininho... assunto encerrado, voltamos para casa.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

(Não) era só uma pedra

Maria Joana brincava na grama da UFS enquanto eu participava de uma roda de conversa sobre proibicionismo e feminismo. Pedras, plantas, folhas e os gatinhos são a junção de tudo o que ela gosta quando vamos à universidade. Então ela elegeu uma pedra um pouco grande e guardou consigo. Disse que iria levar como presente de aniversário para a prima - que realmente aniversariava no mesmo dia.

Acabada a roda, voltávamos para casa de bicicleta quando, antes mesmo de sair da universidade, percebi que ela mordia alguma coisa. Perguntei o que era e ela permaneceu calada, disfarçando. Parei a bicicleta e, quando olhei para trás, percebi que ela estava com a pedra toda dentro da boca. Num misto de nojo e reprovação, peguei a pedra e joguei longe: "Minha filha, eu não acredito que você colocou isso na boca. Não faz mais isso, vamos pra casa". E voltei a pedalar, embalada pelo choro desesperador dela em busca da pedra - durante todo o percurso, que dura cerca de 15 minutos.

Ouvi a mesma frase incontáveis vezes: "Nós temos que voltar pra pegar aquela pedra, que é a pedra da minha vida e de todo o mundo que eu vou dar pra Caquinha", enquanto eu pedalava fingindo que não ouvia nada e respirando fundo. Voltei o caminho todo calada, enquanto ela gritava muito e repetia a mesma coisa. Se eu disser que não fiquei com raiva, estarei mentindo. É óbvio que qualquer pai e qualquer mãe respira bem fundo pra não agir por impulso e gritar ou bater numa hora como essas. Que pessoa gosta de ter nas suas costas a responsabilidade de controlar uma crise de choro de uma criança, ao mesmo tempo em que fica constrangida no meio de uma cruz inquisidora, com todos ao redor olhando com ares de julgamento?

Mas tentei seguir calada, tranquila e esperando chegar em casa para que enfim pudéssemos conversar. Mas ao chegar em casa, ela deitou na cama e chorou até dormir. É nesses momentos que a gente começa a refletir sobre a situação, pensa se poderia ter agido diferente em algum momento, se pergunta se havia alguma decisão correta a tomar, se não seria melhor ter sido mais rígida na autoridade... um misto de culpa, cobrança e autopunição que só nós conhecemos bem.

Então me lembrei das inúmeras vezes que chegamos em um lugar e ela sempre estabelece uma relação de amizade com as pedras, sai catando todas possíveis e quer levar pra casa. Sempre quer presentear alguém com uma pedra e guarda com carinho até encontrar a pessoa que ela quer presentear. Certa vez, fomos a um cinema da cidade que tem várias pedrinhas coloridas no chão e ela ficou encantada com aquilo. Uma amiga minha então perguntou se eu já tinha ouvido falar nas crianças cristais e disse que minha filha parecia ser uma dessas. Depois compreendi que a criança cristal é um anjo de luz que irradia sensibilidade com relação a tudo em seu meio: plantas, animais, cheiros, conflitos etc. São sensitivas e estão em eterna comunhão com a natureza. Claro que não estamos falando em ciência, pediatria ou algo empírico-positivista, mas numa questão de fé ou algo igualmente subjetivo.


O fato é que sempre admiro a relação que minha filha estabelece com a natureza e refletindo sobre aquele momento, penso que poderia ter agido diferente. Para mim, era uma pedra nojenta que ela havia colocado na boca. Para ela, era mais que uma pedra: ela já tinha estabelecido a relação dela com aquela pedra específica e já havia se tornado um presente para a prima. Continuo achando que agi corretamente ao retirá-la da boca, mas poderia ter guardado na cestinha da bicicleta. Pode parecer uma bobagem, mas acho que poderia ter tido uma atitude menos brusca.

Não tínhamos compromisso, não estava com pressa, estávamos indo pra casa e tínhamos o resto do dia livre. Não seria nada de mais parar a bicicleta, conversar numa boa e ter mais paciência. A gente sempre quer ter paciência, mas penso que a maternidade é um exercício diário. Erramos, aprendemos e talvez mudamos. Sempre penso que posso ter mais paciência e melhorar o diálogo. Depois que ela se acalmou e tirou um cochilo, a chamei para conversar e pedi desculpas, disse que não queria ter jogado a pedra fora, mas agi meio nervosa ao vê-la com a pedra na boca. Ela também pediu desculpas, disse que não ia mais fazer, mas pra cortar meu coração, perguntou: "E agora, o que vamos fazer sem a pedra?".

sábado, 10 de maio de 2014

Não deseje Feliz Dia das Mães para mães sem direitos

Esqueça as mães da C&A, Renner, Boticário, Natura e similares. Aquelas mulheres brancas, bem maquiadas, de cabelos alisados, roupas claras, sempre meigas e emocionadas com o presente mais caro das lojas nem de longe representam o sofrimento de tantas mães que vivem em um país economicamente desigual, machista, racista, preconceituoso e penal como o Brasil.

Charge de Carlos Latuff.
Enquanto as mães de classe média destacadas pelas colunas sociais como "bem nascidas" publicam fotos alegres com suas famílias em fartos almoços do Dia das Mães, outras mães continuam chorando e lutando para que os preconceitos de uma classe média "bem nascida" parem de pedir mais polícia que matam seus filhos e suas mães, para que mega eventos e projetos de desenvolvimento bem alardeados pela mídia parem de expulsá-las de suas casas e para que um dia possam simplesmente viver.

Manifestantes no ato "A paixão de Cláudia", em homenagem
a Cláudia Ferreira no dia 18 de abril, em São Paulo. 
Enquanto defendermos a luta armada contra as drogas e a ação policial militarizada nas favelas, não temos o direito de desejar Feliz Dia das Mães aos filhos de Cláudia Ferreira da Silva e à mãe de Douglas Pereira (DG). Enquanto ensinarmos aos nossos filhos noções de intolerância religiosa como a ideia de que religiões de presença africana são "coisa do demônio", seremos eternamente cúmplices de mitos e boatos preconceituosos que motivam a "caça às bruxas" que culminou na morte de Fabiane de Jesus, acusada de praticar "magia negra". Uma cultura que é intolerante às diversas formas de crença e alimenta boatos como esse para criminalizar outras religiões não terá nunca o direito de desejar Feliz Dia das Mães às filhas de Fabiane.

Maria de Fátima (mãe de Douglas Pereira) e Deize Carvalho (mãe de André Luiz)
perderam seus filhos pela violência do Estado.

Jaílton e as filhas Yasmin e Ester - família de Fabiane Maria de Jesus,
assassinada por um mito que cerca a intolerância religiosa.
Foto: Marcos Alves/O Globo.
Enquanto fecharmos os olhos para o extermínio da juventude negra nas periferias, não temos o direito de desejar Feliz Dia das Mães a nenhuma mulher negra e pobre, que todos os dias dorme e acorda com medo de seu filho ser linchado, "confundido com um bandido" e não voltar mais para casa. Enquanto defendermos que "bandido bom é bandido morto", sem que as pessoas tenham o direito de se defender legalmente, seremos eternamente cúmplices da violência urbana e estatal, contra culpados e inocentes.

Mãe tenta defender seu filho da ação policial nas favelas.
Foto: Eduardo Naddar/Agência O Dia
Uma nação que toma Rivotril para dormir, mas acha que maconha é droga e que seu uso deve continuar sendo crime, não tem o direito de desejar Feliz Dia das Mães a Selma Ferreira, que perdeu seu filho Vitor Hugo, de 12 anos em Cuiabá, Mato Grosso. Com crises sucessivas de epilepsia, Vitor dependia de um medicamento feito à base de canabidiol (CBD), substância encontrada na cannabis sativa (popularmente conhecida como maconha) para sobreviver. Mas, depois de percorrer consultórios em busca de médicos que aceitassem prescrever o remédio e órgãos jurídicos em busca de liberação para a compra do medicamento, Selma teve que enterrar seu filho na semana passada. Selma não teve o direito de medicá-lo porque vive em uma sociedade que se julga no direito de dizer a ela que o uso da maconha é crime. Mas essa mesma sociedade, cheia de valores e de "cidadãos de bem preocupados com a lei", não tem o direito de desejar a ela Feliz Dia das Mães.

Selma Ferreira não conseguiu a liberação do medicamento a tempo de salvar seu filho.
Foto: Anselmo Carvalho Pinto
Essa mesma sociedade que apoia a ação militar contra as drogas não tem o direito de desejar Feliz Dia das Mães a nenhuma das mulheres guerreiras que dão a cara pra bater e levam seus filhos à Marcha da Maconha, porque querem ter o direito de viver em uma sociedade livre e poder medicar seus filhos, para evitar a próxima convulsão.

Ala das mães na Marcha da Maconha do Rio de Janeiro.  
Foto: Fernanda Rouvenat/G1
Enquanto defendermos as ações de desenvolvimento econômico que esbarram em direitos sociais, não temos o direito de desejar Feliz Dia das Mães às Mães da Maré, às Mães de Itaquera, às Mães do Pinheirinho, às Mães Quilombolas, às Mães indígenas e todas aquelas que lutam pra ter um pedaço de terra pra plantar e uma moradia decente. Mas são ignoradas pela "necessidade" de modernização e de megaeventos como a Copa do Mundo.

Famílias montam barraca na Ocupação "Copa do Povo", em Itaquera.
Foto: Peter Leone/Futura Press.
Enquanto você defender a ação militarizada da polícia contra os jovens pobres e negros, enquanto defender que a diversidade religiosa é coisa do demônio, que as mulheres que usam roupas curtas merecem ser estupradas, que o uso de maconha deve continuar sendo crime, que os cabelos crespos são "ruins" e devem ser alisados, eu e minha filha seremos eternamente estigmatizadas pelo seu preconceito. Por isso, não me deseje Feliz Dia das Mães com um sorriso racista, machista, preconceituoso e elitista. Você não tem esse direito.