segunda-feira, 25 de agosto de 2014

"Nunca mais eu deixo pra cultivar meus amores depois"

Tem momentos na vida que a gente se sente sufocado. Problemas pra resolver, burocracias pra dar conta, prazos pra cumprir, trabalho, estudo... Assim venho me sentindo nos últimos tempos. Sem explicação racional e aparente, nos últimos meses acabei me entregando aos poucos a essa rotina que faz a gente acordar e dormir pensando em como resolver tanta demanda - mas apenas isso. Meu caminhar, pensar, sentir, todas as minhas energias, voltadas a compromissos e obrigações e a resolver os problemas que vão aparecendo no meio do caminho.

Aos poucos, já andava sem vontade de sair de casa. E quase sempre com a cabeça tensa e pouco tolerante - inclusive com minha filha. Nos últimos tempos, vinha me irritando com esse hábito dela de "ficar em cima" quando percebe a gente tenso, irritado, chateado, chorando, brigando... enfim, é nesses momentos que ela inicia uma conversa, faz perguntas, quer ficar no colo, chama pra comer etc. Cheguei a reclamar um bocado com ela por causa disso, e mesmo sem querer, acabei descontando algumas irritações nela.

Mas os encontros da vida sempre nos surpreendem e se encarregam de dar aquele sacode de que precisamos. Em pleno domingo, saí de casa me arrastando, às 6h da matina, pra ajudar na organização de um café da manhã beneficente. É isso, acordar muito cedo me deixa de mau-humor - principalmente no domingo. Só depois percebi que foi uma oportunidade tão revigorante de sair de casa, comer umas frutas na beira da praia e encontrar bons parceiros de mundo que sempre nos animam. Ao final do café, já tava animada pra voltar para casa e dormir, quando sentei pra conversar com uma companheira de maternidade que conheci há pouco tempo pelo Facebook.

Conversa vai, conversa vem, ela me pergunta sobre como anda o mestrado - foi a deixa pra eu começar a desabafar descontroladamente sobre a dissertação, os problemas do campo de pesquisa, a insegurança, e o quanto eu não conseguia canalizar os momentos de irritação pra evitar descarregar na minha filha e em outros ao redor.

Ela então comentou que, quando passou por essa fase, brigava muito com o marido e a família ficava tensa. Disse que me entendia perfeitamente, mas que depois desse momento, refletiu e colocou uma coisa na cabeça: mestrado, trabalho, obrigações.. nada disso seria justificativa pra deixar de lado as pessoas que na verdade seguem ao lado dela nessa caminhada da vida. "Posso qualificar amanhã, posso estar com o prazo apertado, posso ter mil coisas pra resolver, mas primeiro eu vou me certificar de como está minha família. Se tá tudo bem com meu companheiro, se minha filha tá ótima, agora sim, eu sento e me concentro no que eu tenho que fazer. É assim que resolve? Pronto, eu vou lá e faço. Nunca mais eu deixo pra cultivar meus amores depois".

Enquanto a gente conversava, o marido e a filha dançavam alegremente ali perto e eu nem tinha mais nada a dizer e tentei segurar o choro. Percebi que "ficar em cima" era o jeito de minha filha dizer: "Olha, eu tô aqui com você", nos momentos de tensão. E eu não fui capaz de compreender isso - ou talvez tenha percebido e não soube retribuir. Acordar cedo no domingo e estar naquele lugar me proporcionou esse encontro - e muitos outros, tão deliciosos quanto - e foram as palavras dessa mulher que eu conheço tão pouco que me deram o sacode que eu precisava.

E a cada dia tenho mais certeza de que nenhum encontro acontece à toa. Depois disso, decidi coroar o domingo com um banho de rio, ao lado dos amores e amigos. E decidi que nunca mais posso esquecer de cultivar o que é mais importante nessa caminhada. Esse domingo que me tirou da cama às 6h foi um dos melhores que já vivi.



sábado, 2 de agosto de 2014

Sobre a fantástica amizade de criança

Amizade de criança é a coisa mais fantástica que existe na humanidade. Não precisa de muito: elas se encontram, se olham e basta a primeira correr. Pronto, uma não sabe o nome da outra, nem endereço, telefone, escola... não precisa perguntar nada. Basta aquele olhar cúmplice do tipo: "Brinca comigo?" na fila do supermercado, e dali a pouco uma já está chamando a outra pra continuar a brincadeira em sua casa. Às vezes nem isso: quando o pai ou a mãe, com a pressa esmagadora da rotina, chama: "Bora, filho", um tchauzinho com a mão termina de selar o momento, como se fosse um: "Foi bom, adorei, mas agora tenho que ir, a gente se encontra qualquer dia pela vida, ou quem sabe nunca, mas não tem importância. Fui!".

Não há olhares tortos para a roupa da outra, uma não quer saber se o chinelinho da outra é velho ou se a sandália está fora de moda, se a outra é gorda, se o cabelo está assanhado, se aquela calcinha bunda-rica (tem coisa mais fofa que essa calcinha?) foi comprada na C&A ou na Farm, não há julgamentos voltados às compras no carrinho, não acontece o famoso olhar "de cima para baixo", cuja principal função é tentar atribuir um status social àquela pessoa que se olha, acompanhado de comentários do tipo: "Você viu? Acho ridículo quem sai de casa com uma roupa daquela".


E então crescemos. Se não pudermos ficar com o cabelo mais bonito que o da vizinha, a vida não serve pra nada. Tudo só tem graça se pudermos ter o corpo da capa da Playboy, com direito a desqualificar a outra pra se sentir melhor: "Você viu quantas celulites ela tem? Nem é essas coisa toda". Divididas em "mulher pra casar" e "mulher pra pegar", aprendemos que o sucesso de uma vida depende do quanto conseguimos nos encaixar em padrões estabelecidos, em preparar a aparência de forma tal pra conseguir um homem, um emprego, ser 'a mais desejada' do condomínio, 'causar inveja' às outras da universidade, 'arrasar' na festa em que fulaninha vai estar. Aprendemos que relacionamento é troféu e, além de ser ostentado como objeto de felicidade e realização, também deve ser disputado a tapas com a "primeira biscate que se aproximar".

Torna-se impensável estabelecer qualquer relação de amizade e solidariedade com qualquer mulher, ainda mais a desconhecida na fila do banco. Por que será que as coisas mudam tanto? A partir de que momento deixamos de ser aquela pequenina simpática que se afeiçoa a qualquer outra que quiser partilhar um bom momento e passamos a nos degladiar, nem que seja "com os olhos"? E se fizéssemos um exercício de autocrítica, de reflexão, pra tentar entender o porquê de mudarmos tanto nesse sentido? E se a gente tentasse fazer diferente?


E se simplesmente passássemos a observar nossos filhos interagindo com outras crianças? Quanto será que poderíamos aprender com eles? Não, não estou dizendo que todos devem sair correndo com um desconhecido pela fila do banco - a não ser que você e o desconhecido queiram. Mas acho que seria interessante observarmos a facilidade que nossos filhos têm de sorrir, conversar, brincar, interagir de forma positiva com qualquer outro ao lado, sem razão alguma. Apenas sorrir, trocar um bom momento de conversa, de risada, de solidariedade, mesmo que você nunca mais veja aquela pessoa, mesmo que nem saiba o que ela faz da vida, com quem ela transa, se é casada, qual tipo de roupa ela usa e o que gosta de fazer nos finais de semana.

Apenas viver, partilhar a vida, tornar um momento chato como a fila, o engarrafamento, as pesquisas da feira, a meia-hora de caminhada na esteira da academia, o jantar de família que você não pode faltar, naquela lembrança que você sempre vai ter, de uma mulher tão simpática que contou uma história tão interessante que você nem viu as horas passarem. Percebemos que nossos filhos têm muito a nos ensinar quando nos sentimos "forçados" a interagir com os pais do amiguinho que tá brincando com eles.