quinta-feira, 26 de junho de 2014

"Podem o que quiserem"

Sempre que alguém pergunta "como será que fica a cabeça de uma criança criada por casais gays" ou "como elas vão lidar com o fato de verem seus coleguinhas na escola com pais e mães", eu penso que seria adequado responder-lhes com outra pergunta: "em que mundo você vive?" 

Pois bem, eu posso dizer o mundo em que vivo. Eu e Rafael temos 29 anos e somos pais de uma menina de 3. Desde que ela nasceu, foi inserida naturalmente no nosso círculo de amizades e convivência, que inclui militantes de esquerda, grupos feministas, movimentos negros, praticantes de religiões de presença africana, professores e colegas universitários, casais gays, mães e pais solteiros, famílias com crianças adotadas, entre outros perfis e estilos de vida que servem de rótulo constante para quem tem prazer em estigmatizar.

Nunca precisamos ensinar a nossa filha que ela deve ter orgulho do cabelo cacheado e volumoso, porque grande parte de nossos amigos ostentam grandes blackpowers, dreadlocks (inclusive o pai) e outros penteados afro. Ela se recusa a amarrar ou "domar" o cabelo, mesmo sob a insistência gritante de vários parentes em eventos de família. "Não, obrigada", ela responde a quem brada: "Ajeite o cabelo dessa menina". É claro que Maria Joana não sabe ainda a importância do cabelo para a reafirmação de uma identidade historicamente oprimida, ela quer simplesmente usá-lo como muitos ao seu redor usam: livremente. Mas isso já é um grande passo para poder viver na "geração chapinha".

Da mesma forma, nunca precisamos ensiná-la o que é um casal gay. Não é preciso criar explicações para o que é natural. Casais são casais e ponto, não há rotulações. Então, ela nunca fez nenhum questionamento, nunca demonstrou tabu ou estranhamento ao ver um casal gay, porque para ela é uma relação como qualquer outra - assim como para nós. Durante um ano, moramos em uma república estudantil e no quarto ao lado do nosso, dormia um casal homoafetivo. Ela tinha entre 1 e 2 anos nessa época e sempre soube que eles eram companheiros. 

Ana Cláudia e Cecília, com os filhos adotivos:
Laura, Ezequiel e André.

Ao contrário do que prega o senso comum, ela nunca presenciou pornografia, palavras obscenas, gestos sexuais ou algo do tipo. Éramos uma família e ninguém nunca precisou explicar para ela: "Olha, sabe fulano e cicrano? São gays, eles são namorados". Quando um chegava, ela perguntava pelo outro. Gostava dos dois, assim como gostava de brincar com os dois. Quando meus pais se separaram, ela passou a ouvir conversas paralelas na casa dos avós e um dia perguntou a meu pai: "Vovô, cadê seu namorado?". Meu pai se ofendeu e todos reagiram com estranhamento. Mas, ao contrário do que pediam os olhares indignados da família, não briguei com ela. Expliquei que o vovô não gostava de ser questionado sobre seu namorado ou sua namorada. Meu pai é desses senhores que jamais aceitariam um casal gay, quanto mais ser um. Mas, para mim, é perfeitamente normal que ela pense que o vovô possa ter um namorado e eu não queria dizer a ela que de alguma forma ela estava errada em perguntar isso. 

Da mesma forma, estávamos um dia chegando ao ponto de ônibus, quando duas amigas se despediram com um abraço e uma delas subiu no ônibus. Ela se virou para a moça que ficou no ponto e perguntou: "Sua namorada vai pra onde?". A menina respondeu que eram amigas, e que a amiga estava indo para casa. Expliquei que não são só namorados ou namoradas que trocam carícias e o ponto positivo dessa cena um pouco constrangedora foi perceber que ela tinha em sua mente um conceito de naturalidade que incluía relações homoafetivas, ou seja, que ver e conviver com casais gays era algo completamente natural para ela. 

Mas não podemos colocar nossos filhos na bolha do nosso estilo de vida. Na escola, no parquinho do condomínio, ela aprende que "o certo é homem casar com mulher" e já chegou ao ponto de pedir insistentemente que eu e o pai nos casássemos, porque "ela quer muito". Mesmo explicando para ela que mamãe não gosta de se casar e não vai se casar, ela responde que "vocês têm que se casar". Eu chamo isso de "ofensiva moral". É o processo através do qual os nossos filhos chegam em casa "contaminados" pelo bombardeio moralista que tanto criticamos. Isso vem de espaços institucionais de moral conservadora, como a escola, a família etc. Não há como evitar, mas combatemos. 

E aqui assumo um erro: por ter percebido em algum momento que, para ela, não havia tabus, "baixei a guarda" e paramos de mostrar exemplos, de conversar sobre isso... deixamos as águas do rio correrem e nos esquecemos que sempre vai existir a ofensiva moralista para desconstruir tudo aquilo que ensinamos. Mas somos insistentes. Mamãe e papai nunca vão se casar e homens podem se casar com homens e mulheres podem se casar com mulheres. Ou podem namorar, sem casar. "Podem o que quiserem", é uma frase que procuro usar sempre em diálogos que envolvem relações de gênero. 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

De qual lado está o assustador?

O corpo humano é tão frágil e tem seus limites como qualquer tecido que a qualquer momento pode desfiar ou se romper. De modo que, a todo tempo nos deparamos com situações e histórias que envolvem pessoas tentando se reerguer e normalizar suas vidas depois de acidentes ou tragédias - ou tentando adaptar seus corpos para isso. Supõe-se que esse tenha sido o pensamento de Kelly Mullins ao levar sua filha de 3 anos, Victoria, para jantar em um restaurante alguns dias depois de a menina ter sido submetida a várias cirurgias para recuperar o máximo possível de sua face após ela ter sido mordida por três cachorros na cidade onde mora, no Mississipi, EUA.

Depois do acidente, a garotinha "perdeu a visão do olho direito, quebrou a mandíbula, o queixo e o nariz e teve cortes profundos na bochecha". Depois de uma tragédia como essa, o que resta à família de uma criança de três anos além de acompanhar os tratamentos e procedimentos cirúrgicos necessários à recuperação física e psicológica da menina? Retomar aos poucos a rotina, suponho. O cotidiano de uma criança de 3 anos, que está fortalecendo vínculos com a família, parentes e amigos, começando a descobrir o mundo, as pessoas, a maneira como as coisas funcionam e o que pode lhe trazer prazer, suponho eu como mãe.

A pequena Victoria
Então, o que faz uma mãe retirar de casa sua filha recém-operada, mesmo se alimentando apenas por um tubo, para ir comer em um restaurante? Por que ela não pediu a comida por telefone? A meu ver, a resposta é muito simples: proporcionar à filha o direito de retomar a sua vida, a sua rotina, os seus hábitos, ajudá-la a perceber que é possível se recuperar de um acidente e de várias cirurgias mantendo programas familiares ou hábitos de lazer que se mantinham antes ou até mesmo coisas novas. Mas parece que é muito difícil para alguns terem a sensibilidade de perceber isso.

Segundo matéria de O Globo, "Victoria saiu com a sua mãe para jantar em um restaurante da rede de fast food KFC. Após ter de tomar chá gelado e ingerir purê de batata por um tubo, a menina foi interpelada por um funcionário do estabelecimento, que pediu para que as duas se retirassem do local. O motivo, segundo ele, era que a cena estava "incomodando" outros clientes".

Eu não estava lá para ver a cena, mas duvido que existisse ali algo além de uma cena familiar, em que uma mulher ajuda a sua filha de 3 anos recém-operada a comer, porque é óbvio que isso requer mais cuidado do que o usual. Pode até ser uma cena inusitada ou que chame a atenção, mas o olhar "assustado" que se parece direcionar a uma criança recém-acidentada e operada denuncia a maneira como boa parte de nós ainda vê outros seres humanos com limitações físicas - de maneira inquisidora, como se estivesse diante de uma "aberração", uma coisa "abjeta", "não-humana". E que por tudo isso, "deve estar longe de meus olhos e da minha presença".

Quem de nós pensa o quanto é duro para uma mãe ter que explicar à sua filha que as pessoas querem ela longe dali porque é assustador que ela tente retomar a sua rotina e seus hábitos na frente daqueles que se acham perfeitos ou livres de qualquer limitação física, de qualquer deformação que possa vir a ocorrer após um acidente? Assustador é que, ao invés de a empresa, através do funcionário, ter ido interpelar a família para expulsá-la do local, não tenha questionado se havia ali a necessidade de um atendimento especial ou personalizado, ou se elas precisariam de mais alguma coisa além o que já havia sido oferecido como atendimento.

Então vemos questionamentos do tipo "Se a menina estava com o rosto daquele jeito, por que a mãe não pediu comida por telefone e comeu com ela em casa?". Será que é essa a pergunta que devemos nos fazer? Quando vejo esse tipo de reação a um episódio como esse, constato que é cada vez mais difícil a luta de quem tenta viver e criar filhos em meio a uma humanidade tão desumana e tão desanimadora.