quinta-feira, 18 de julho de 2013

Questões de morte, etnia e gênero em "O Rei Leão"

Nunca me conformei com a morte de Mufasa. Sempre achei que se a gente pudesse falar com os criadores do 'Rei Leão' e dizer a eles o quanto aquela cena nos marcou, eles teriam voltado atrás e teriam deixado o Mufasa vivo - apenas ferido depois da debandada. Pensava o quanto era injusto Simba perder um pai tão bom e companheiro sendo tão pequenininho e depois ainda ter que se virar sozinho.

Depois de muitos anos e já mãe, me lembrei do Rei Leão e decidi baixar pra Maria Joana assistir. Na primeira vez que ela viu, observei atentamente sua reação à morte de Mufasa e percebi que ela ficou muito sentida. Mas não falou nada. A partir de então ela queria ver 'O Rei Leão' dia e noite. Mas, depois de algumas repetidas vezes, quando começava a fatídica cena, ela dizia: "Mamãe, não gosto mais desse filme". Então eu adiantava o DVD para a cena em que Pumba e Timão encontram Simba desacordado e perdido. E até hoje é o mesmo processo: ao começar a cena, ela já me chama com cara de choro pra que eu corte a tragédia do imaginário dela.

A fatídica cena da morte de Mufasa
Sempre acho que as animações e suas representações são grandes aliadas da pedagogia e do diálogo com as crianças. Conversando com elas sobre o que elas enxergam nas cenas, podemos perceber melhor sobre suas visões de mundo, de relações etc. Entre os desenhos a que ela assiste, o Rei Leão se destaca por conseguir transmitir a ela uma série de valores riquíssimos: a relação de amizade e admiração entre Simba e o pai, a coragem de lutar pela sua terra, a união das leoas num momento de fome e miséria, o respeito mútuo entre os animais (o maior ensinamento de Mufasa a Simba), a cadeia alimentar etc. E, claro, o estilo de vida Hakuna Matata.

No entanto, em se tratando de animações, precisamos ir um pouco além do fácil aparente e refletir sobre elementos mais subjetivos. Na trilogia do Rei Leão, outras coisas também me deixam inquieta, mas não consigo ainda dialogar com minha filha sobre isso: o que mais me incomoda é a relação de etnia com os conceitos de bem e mal. Enquanto Mufasa é claro, Scar, o malvado, é o único leão negro (no Rei Leão II, o filho dele é um leão negro, vivendo na terra dos exilados e proibido de entrar nas terras do reino). Enquanto o território é regido por Scar, tudo vive na escuridão; já quando Simba retorna para assumir o trono, "o reino dos bons" é bastante iluminado pelo sol. Seja como cor do pelo (ou da pele) ou do ambiente de vida, a dicotomia bem x mal está bastante associada a outra dicotomia: o claro x o escuro.

Cenas protagonizadas por Scar são escuras e sombrias

As cenas de Mufasa são claras e bem iluminadas pelo sol
Outro ponto que me inquieta é a questão de gênero. Todos sabemos que são as leoas as responsáveis pela caça (no mundo real). Já no desenho, é Mufasa quem ensina Simba a caçar, enquanto as leoas têm um comportamento dócil, submisso e permissivo - muito diferente de qualquer cena que vemos em canais como o Discovery Channel. Contraditoriamente, apenas no reino de Scar, às leoas é delegada a tarefa da caça. Um filme não são apenas representações de mundo - são representações imaginárias das pessoas que o criam, com suas visões de mundo inseridas nesse processo.

Além disso, se pensarmos que os leões claros e bem alimentados vivem num reino próspero e amplamente iluminado, enquanto os leões escuros (como o filho de Scar e sua mãe) vivem na terra dos exilados, afastados das terras dos reinos e sem tanta possibilidade de alimentação, será que essa relação não tem nada a ver com a relação entre pobreza e a marginalidade? Existe uma diferenciação de classes na história do Rei Leão e ela é relativamente nítida.

Já o Rei Leão II traz uma nova roupagem. Além de ter uma fêmea na sucessão do trono (Kyara), a filha de Simba constroi uma relação de união com Kovu (o filho de Scar), dissolvendo assim a fronteira simbólica que separa as terras do reino e a terra dos exilados - mostrando talvez que homens e mulheres, branco e negros, ricos e pobres podem dissolver suas fronteiras e viver em harmonia. Será? Para que as diferenças sejam dissolvidas, uma das partes há que ceder. Em uma relação desigual de forças, quem sempre cede em prol da harmonia?

Kyara conhece Kovu na sombria terra dos exilados
Para que Kyara e Kovu pudessem ficar juntos, Kyara foi morar na terra dos exilados ou Kovu teve que se submeter a ser aceito nas terras do reino? Os desenhos animados não são apenas imagens e sons coloridos que usamos para que nossos filhos se distraiam. São representações ideológicas subjetivamente inseridas em cada cena, em cada cor, em cada relação, em cada música tocada em determinado momento. Se nos preocupamos com a forma como as crianças se relacionam e vivem em sociedade, é preciso refletir sobre os valores e ideias que eles apreendem através das animações e de que forma podemos dialogar com eles sobre isso.

Acho que ainda não é tempo de falar sobre esses elementos menos perceptíveis com minha filha, que tem apenas 2 anos. Procuro apenas observar a compreensão dela através do que ela fala sobre situações parecidas etc. E então vamos conversando.

2 comentários:

  1. Realmente alguns pontos refletem o que a nossa sociedade atual expira, como a diferença social, simbolismos como claro versus escuro, o bem contra o mal. Acho que é uma escolha natural a partir do que enxergamos. Como criar um filme que não reflete o que o produtor vê?
    O problema, de certo, é perpetuar alguns esteriótipos, mas acredito que isso não foi tão forte no filme.
    Quanto à morte de Mufasa, acredito que ele deveria, sim, acontecer. Depende muito da criança que está assistindo. Meu filho, por exemplo, fica triste nessa parte, mas não deixa de assistir. Talvez seja um pouco menos sensível. Pouco, digo, pois quando ele vai contar sobre o filme ele diz que "Scar empurrou o pai de Simba e ele ´puf!´, morreu".
    Alguns psicólogos apoiam a ideia de mostrar desde cedo aos filhos o conceito de morte, para uma melhor cognição de outros fatores da vida.
    A minha opinião? Prefiro que um filme seja menos fantasioso e mais realista (sem fazer perder a imaginação, claro) e eu acho que o Rei Leão consegue isso (exceto pelos esteriótipos desnecessários, mas inevitáveis).
    Ademais, bom texto.

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