segunda-feira, 16 de junho de 2014

De qual lado está o assustador?

O corpo humano é tão frágil e tem seus limites como qualquer tecido que a qualquer momento pode desfiar ou se romper. De modo que, a todo tempo nos deparamos com situações e histórias que envolvem pessoas tentando se reerguer e normalizar suas vidas depois de acidentes ou tragédias - ou tentando adaptar seus corpos para isso. Supõe-se que esse tenha sido o pensamento de Kelly Mullins ao levar sua filha de 3 anos, Victoria, para jantar em um restaurante alguns dias depois de a menina ter sido submetida a várias cirurgias para recuperar o máximo possível de sua face após ela ter sido mordida por três cachorros na cidade onde mora, no Mississipi, EUA.

Depois do acidente, a garotinha "perdeu a visão do olho direito, quebrou a mandíbula, o queixo e o nariz e teve cortes profundos na bochecha". Depois de uma tragédia como essa, o que resta à família de uma criança de três anos além de acompanhar os tratamentos e procedimentos cirúrgicos necessários à recuperação física e psicológica da menina? Retomar aos poucos a rotina, suponho. O cotidiano de uma criança de 3 anos, que está fortalecendo vínculos com a família, parentes e amigos, começando a descobrir o mundo, as pessoas, a maneira como as coisas funcionam e o que pode lhe trazer prazer, suponho eu como mãe.

A pequena Victoria
Então, o que faz uma mãe retirar de casa sua filha recém-operada, mesmo se alimentando apenas por um tubo, para ir comer em um restaurante? Por que ela não pediu a comida por telefone? A meu ver, a resposta é muito simples: proporcionar à filha o direito de retomar a sua vida, a sua rotina, os seus hábitos, ajudá-la a perceber que é possível se recuperar de um acidente e de várias cirurgias mantendo programas familiares ou hábitos de lazer que se mantinham antes ou até mesmo coisas novas. Mas parece que é muito difícil para alguns terem a sensibilidade de perceber isso.

Segundo matéria de O Globo, "Victoria saiu com a sua mãe para jantar em um restaurante da rede de fast food KFC. Após ter de tomar chá gelado e ingerir purê de batata por um tubo, a menina foi interpelada por um funcionário do estabelecimento, que pediu para que as duas se retirassem do local. O motivo, segundo ele, era que a cena estava "incomodando" outros clientes".

Eu não estava lá para ver a cena, mas duvido que existisse ali algo além de uma cena familiar, em que uma mulher ajuda a sua filha de 3 anos recém-operada a comer, porque é óbvio que isso requer mais cuidado do que o usual. Pode até ser uma cena inusitada ou que chame a atenção, mas o olhar "assustado" que se parece direcionar a uma criança recém-acidentada e operada denuncia a maneira como boa parte de nós ainda vê outros seres humanos com limitações físicas - de maneira inquisidora, como se estivesse diante de uma "aberração", uma coisa "abjeta", "não-humana". E que por tudo isso, "deve estar longe de meus olhos e da minha presença".

Quem de nós pensa o quanto é duro para uma mãe ter que explicar à sua filha que as pessoas querem ela longe dali porque é assustador que ela tente retomar a sua rotina e seus hábitos na frente daqueles que se acham perfeitos ou livres de qualquer limitação física, de qualquer deformação que possa vir a ocorrer após um acidente? Assustador é que, ao invés de a empresa, através do funcionário, ter ido interpelar a família para expulsá-la do local, não tenha questionado se havia ali a necessidade de um atendimento especial ou personalizado, ou se elas precisariam de mais alguma coisa além o que já havia sido oferecido como atendimento.

Então vemos questionamentos do tipo "Se a menina estava com o rosto daquele jeito, por que a mãe não pediu comida por telefone e comeu com ela em casa?". Será que é essa a pergunta que devemos nos fazer? Quando vejo esse tipo de reação a um episódio como esse, constato que é cada vez mais difícil a luta de quem tenta viver e criar filhos em meio a uma humanidade tão desumana e tão desanimadora.

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