sábado, 2 de agosto de 2014

Sobre a fantástica amizade de criança

Amizade de criança é a coisa mais fantástica que existe na humanidade. Não precisa de muito: elas se encontram, se olham e basta a primeira correr. Pronto, uma não sabe o nome da outra, nem endereço, telefone, escola... não precisa perguntar nada. Basta aquele olhar cúmplice do tipo: "Brinca comigo?" na fila do supermercado, e dali a pouco uma já está chamando a outra pra continuar a brincadeira em sua casa. Às vezes nem isso: quando o pai ou a mãe, com a pressa esmagadora da rotina, chama: "Bora, filho", um tchauzinho com a mão termina de selar o momento, como se fosse um: "Foi bom, adorei, mas agora tenho que ir, a gente se encontra qualquer dia pela vida, ou quem sabe nunca, mas não tem importância. Fui!".

Não há olhares tortos para a roupa da outra, uma não quer saber se o chinelinho da outra é velho ou se a sandália está fora de moda, se a outra é gorda, se o cabelo está assanhado, se aquela calcinha bunda-rica (tem coisa mais fofa que essa calcinha?) foi comprada na C&A ou na Farm, não há julgamentos voltados às compras no carrinho, não acontece o famoso olhar "de cima para baixo", cuja principal função é tentar atribuir um status social àquela pessoa que se olha, acompanhado de comentários do tipo: "Você viu? Acho ridículo quem sai de casa com uma roupa daquela".


E então crescemos. Se não pudermos ficar com o cabelo mais bonito que o da vizinha, a vida não serve pra nada. Tudo só tem graça se pudermos ter o corpo da capa da Playboy, com direito a desqualificar a outra pra se sentir melhor: "Você viu quantas celulites ela tem? Nem é essas coisa toda". Divididas em "mulher pra casar" e "mulher pra pegar", aprendemos que o sucesso de uma vida depende do quanto conseguimos nos encaixar em padrões estabelecidos, em preparar a aparência de forma tal pra conseguir um homem, um emprego, ser 'a mais desejada' do condomínio, 'causar inveja' às outras da universidade, 'arrasar' na festa em que fulaninha vai estar. Aprendemos que relacionamento é troféu e, além de ser ostentado como objeto de felicidade e realização, também deve ser disputado a tapas com a "primeira biscate que se aproximar".

Torna-se impensável estabelecer qualquer relação de amizade e solidariedade com qualquer mulher, ainda mais a desconhecida na fila do banco. Por que será que as coisas mudam tanto? A partir de que momento deixamos de ser aquela pequenina simpática que se afeiçoa a qualquer outra que quiser partilhar um bom momento e passamos a nos degladiar, nem que seja "com os olhos"? E se fizéssemos um exercício de autocrítica, de reflexão, pra tentar entender o porquê de mudarmos tanto nesse sentido? E se a gente tentasse fazer diferente?


E se simplesmente passássemos a observar nossos filhos interagindo com outras crianças? Quanto será que poderíamos aprender com eles? Não, não estou dizendo que todos devem sair correndo com um desconhecido pela fila do banco - a não ser que você e o desconhecido queiram. Mas acho que seria interessante observarmos a facilidade que nossos filhos têm de sorrir, conversar, brincar, interagir de forma positiva com qualquer outro ao lado, sem razão alguma. Apenas sorrir, trocar um bom momento de conversa, de risada, de solidariedade, mesmo que você nunca mais veja aquela pessoa, mesmo que nem saiba o que ela faz da vida, com quem ela transa, se é casada, qual tipo de roupa ela usa e o que gosta de fazer nos finais de semana.

Apenas viver, partilhar a vida, tornar um momento chato como a fila, o engarrafamento, as pesquisas da feira, a meia-hora de caminhada na esteira da academia, o jantar de família que você não pode faltar, naquela lembrança que você sempre vai ter, de uma mulher tão simpática que contou uma história tão interessante que você nem viu as horas passarem. Percebemos que nossos filhos têm muito a nos ensinar quando nos sentimos "forçados" a interagir com os pais do amiguinho que tá brincando com eles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário