segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Hostilidade dos médicos brasileiros: já estamos acostumados

Após muita polêmica, chegam ao Brasil os primeiros médicos estrangeiros - cubanos, mais especificamente - , como parte de um convênio com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo o próprio programa criado pelo Governo Federal - Mais Médicos -, esses profissionais seriam escalados para atuar em áreas onde há carência de profissionais da saúde. Segundo o Ministério da Saúde, o atual déficit de médicos no país é de 54 mil – número contestado por organizações médicas brasileiras.

Não quero aqui entrar no mérito de ser a favor ou contra o programa. O que me chama atenção nesse momento é a hostilidade com que esses profissionais têm sido recebidos nas cidades de Salvador, Brasília, Recife e Fortaleza. Mesmo com um número irrisório de 1,8 médico para cada mil habitantes no Brasil, os médicos brasileiros jogam a responsabilidade na falta de estrutura das unidades de saúde da rede pública e na ausência de planos de carreira consistentes. O presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto Luiz d´Avila, disse ainda que "[Os médicos brasileiros] não estão no interior do país porque o governo nunca teve uma política pública de interiorização da assistência".

Sei que é difícil para o presidente de um conselho federal conhecer a realidade de cada povoado em cada interior desse país, mas essa afirmação é, no mínimo, contraditória. Não falo isso por especulações ou adivinhações, mas por experiência própria. Trabalhei alguns meses no caderno de Municípios de um jornal semanal local e não foram poucas as vezes que me desloquei com uma equipe de reportagem para povoados no interior de Sergipe onde a população reclamava da falta de médicos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) - toda semana tínhamos pelo menos um caso desse pra apurar. Em todos os casos (todos sem exceção) em que nos deslocamos para esses locais, a ausência de médico não era por falta de contratação. Tínhamos acesso à folha de pagamento dos respectivos municípios e os documentos comprovavam que havia profissionais escalados e salários depositados em suas contas. 

A população desses povoados ficava sem atendimento unicamente porque esses profissionais não iam trabalhar - em alguns casos, contatávamos que eles estavam atendendo em clínicas particulares em dias e horários em que deveriam atender e clinicar a população que depende do Sistema Único de Saúde (SUS). Há falta de estrutura na rede pública de saúde? Há. Há problemas com relação ao plano de carreira? Com certeza. Mas será que problemas estruturais justificam o recebimento dos salários, para deixar na mão pacientes mais carentes do mínimo de assistência em detrimento de pessoas que podem pagar uma consulta particular?  

Lembro-me também que a maioria das reclamações que recebíamos vinha de mulheres e mães, que necessitavam de exames pré-natais e outras especificidades ginecológicas e obstetrícias. Não precisa nem ser médico pra saber que mulheres e crianças têm especificidades no atendimento à saúde e que são as mais prejudicadas com a falta de atendimento. Principalmente as gestantes e parturientes. Pouco tempo depois de fazer essas matérias, descobri que estava grávida e agora era a minha vez de sentir na pele o que aquelas entrevistadas passavam. Fiz todo o meu pré-natal pelo SUS, pois não tinha mais plano de saúde e depois de grávida não há como contratar um plano - por exemplo, uma mulher que assina um plano de saúde só tem direito à cobertura do parto depois de 10 meses. 

Posso dizer que não foi nada fácil. Não foram poucas as vezes que voltei pra casa me sentindo humilhada e e até mesmo culpada por uma gravidez. O menor tempo que esperei pra ser atendida por um obstetra foi cinco horas. E em um desses dias eu e mais uma dezena de gestantes tivemos que esperar o médico chegar por duas horas - duas horas de atraso para atender gestantes. E, depois de esperar por horas para uma simples consulta, o que recebíamos era um tratamento muito diferente da humanização proposta pelo Governo Federal. Por vezes invasiva e humilhante, inclusive. Lembro-me muito bem que em uma das consultas o médico falou para mim que o mal da gestante é querer escolher o tipo de parto que ela vai ter - porque quem sabe o tipo de parto a ser realizado é o médico. Disse que as mulheres hoje em dia são muito "frescas" para parir e que ninguém quer sentir mais dor. Topa em você como se seu corpo - e a sua barriga - fosse um botão de elevador.

Foi então que hoje eu li uma notícia que informava a hostilidade com que os médicos cubanos foram recebidos em Fortaleza na noite de ontem, 26. Aí eu pergunto: qual a novidade? Nada muito diferente para quem já está acostumado a receber com hostilidade os pacientes do SUS - isso me remete até a uma história que ouvimos da agente de saúde que ia à minha casa. Segundo ela, por vezes uma mulher que acaba de ser estuprada ou violentada chega à Unidade de Saúde para fazer a coleta e muitos médicos têm nojo de fazer o exame. Simplesmente mandam ela voltar pra casa e tomar banho ou encaminham ao Instituto Médico Legal (IML).

Sala improvisada para atendimento em hospital de Fortaleza,
chamada por pacientes e visitantes de "piscinão" (Foto: André Teixeira/G1)
Então eu pergunto: são esses os médicos que estão preocupados com a saúde pública? Ou estão preocupados com a reserva de mercado? Ou estão revoltados porque percebem que agora será mais difícil assinar a folha pra receber o salário do município e abandonar a população pobre para atender pacientes ricos em uma clínica particular? Se há preocupação com a população brasileira e a saúde pública, não há porque fazer esse escarcéu - quanto mais profissionais, melhor. E questionar a qualidade da formação de medicina em Cuba é extremamente contraditório, ao passo que "estudaram em Cuba e lá se formaram, entre outros, dois filhos de Paulo de Argollo Mendes, presidente há 15 anos do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul e critico ferrenho do programa Mais Médicos". Sem falar nos índices extremamente contrastantes com a realidade caótica do Brasil. 

Por isso, eu pergunto: essa recepção dos médicos brasileiros aos médicos cubanos é algo muito diferente do tratamento que recebem os pacientes do SUS?  



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