Cenas "bobas" do dia a dia às vezes nos levam para outra dimensão em fração de minutos. Hoje cedo eu estava tomando um copinho de café na UFS, quando vi uma mesa de distribuição e várias pessoas sentadas em cadeiras. Passei um tempão me perguntando o que era aquilo, mas não conhecia ninguém ali pra perguntar. Em uma mesa próxima, duas jovens e um homem mais maduro conversam sobre a possibilidade de alugar um pensionato próximo à universidade, pra não haver mais gastos com transporte. "Deve ser matrícula", pensei.
Eis que passam pela mesa um casal de senhores e uma moça muito alta, que aparentava ser a filha deles. A feição dela me chamou atenção, olhinhos brilhando e um ar de insegurança misturado com ansiedade. Me lembrei do primeiro dia que pisei na UFS, tímida, calada e insegura - era o maior lugar que eu já tinha pisado na vida e nunca havia visto tanto verde, tanto mato. Menina urbana que queria encarnar um daqueles gatos e sair pulando e rolando pelas gramas. Lógico que eu não podia ver minha feição no dia, mas sabia que transmitia medo, ansiedade e insegurança, agarrada em meu pai que, pra mim, sabia tudo da vida.
Ao mesmo tempo, imaginei minha filha daquele tamanho todo, que nem aquela menina. Não idealizei um "futuro perfeito" que muitos pais costumam idealizar, como a entrada na faculdade ou o casamento na igreja. Nada disso. Apenas imaginei minha filha daquele tamanho, pegando a bolsa e saindo sem destino - talvez sem me avisar, quem sabe? Posso dizer que é um dilema lembrar de si mesma como filha e se imaginar como mãe na mesma situação. Lembrei que, quando estava grávida, imaginava o dia em que pegaria ela em meus braços. Até hoje ela me pede braço e eu sempre digo que não, porque ela já é "uma mocinha". Quando ela era bebê, eu imaginava ela começando a falar. Nossa, iríamos conversar bastante e eu estava doida pra ouvir ela falando meu nome. Hoje realmente conversamos muito (difícil saber quem fala mais) e ela me chama de mãe, mamis, mamãe, Priscila e, quando quer me irritar, chama de mainha também. Quando passava por uma escola, imaginava ela entrando com a tia chorando e eu ficando pra trás, chorando também. Hoje a cena é igualzinha à minha antiga imaginação. Ela chora pra não ir, a tia pega ela pela mão e eu saio de óculos escuros, pra esconder o choro. E a tia da portaria acha que me consola, dizendo "ela vai ficar bem, mãezinha".
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Quem nunca? |
Algumas coisas na vida acontecem exatamente como imaginamos. Mas outras mudam no meio do caminho. Eu já me imaginei de todo jeito nessa vida. Por muito tempo, meu grande sonho era fugir com a equipe de um circo. Dar tchau a meus pais pra ir ver o espetáculo e nunca mais voltar. Sair pelo mundo sem nome, sem documento, conhecendo vários lugares, várias pessoas e fugindo da realidade. Sempre que ia a um circo, visualizava da arquibancada a melhor rota pra entrar no trailer e me esconder ali. Quando a trupe já estivesse bem longe, eu me apresentaria e eles não teriam como me expulsar. Nunca tive coragem.
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O sonho do circo
Foto do "Experimento Circo", no Sesc Belenzinho |
Depois de desanimar, decidi ser marinheira. Viajar pelo mar para vários lugares, várias pessoas e colecionar lembranças de todos os países. Ter um amor em cada porto, cada um falando um idioma, me amando do seu jeito e sempre me esperando. Todas as minhas amigas sonhavam em se casar e ser princesas e é óbvio que nessa parte eu nunca fui compreendida. Mas tudo bem, ninguém ia saber dos meus amores mesmo. Quando nos mudamos para outro bairro, descobri que o vizinho da frente era aposentado da Marinha. Ele tinha objetos de vários países, várias fotografias, um quartinho dos fundos repleto de relíquias - inclusive aquele rádio que a gente fala "câmbio". Ele era fascinado por sua própria história, mas a esposa dizia que ele só falava bobagens e guardava um monte de quinquilharia no quintal. Quando ele se distraísse, ela jogaria tudo fora, dizia o tempo todo. À tarde, eu ia lá bater na porta e ele me contava mil histórias e me mostrava tudo com tanto orgulho que era difícil não se contagiar - uma vez ele até vestiu a roupa da Marinha pra me mostrar e outro dia tirou uma foto minha com a máquina fotográfica que ele havia comprado na Alemanha. Ele tinha mais de 70 anos e era minha referência perfeita. Eu tinha menos de 15 e era a ouvinte perfeita pra ele. Trocávamos sonhos e histórias, até que ele morreu. A mesma esposa que queria jogar tudo fora se recusou a me dar uma lembrança sequer, qualquer relíquia que ela chamava de "quinquilharia". Pensei um modo de pular o muro e pegar o que eu quisesse, eu conhecia a casa toda e aquilo tudo era mais meu do que dela, eu pensava. Mas não tive coragem (ainda bem).
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Ter um amor em cada porto é um sonho difícil |
Meu sonho de ser marinheira foi se apagando e eu sonhei depois em ser bombeira, professora, jogadora de futebol, prostituta e até mesmo freira. Ninguém entendia meus sonhos, porque neles não tinha nada de médica, advogada, arquiteta ou qualquer coisa do tipo. Não ligo pra o que ninguém pensa, meus sonhos eram meus e pronto. Mas quando conheci Machado de Assis, me encantei com os textos dele e decidi que seria escritora. Escritora mal come, todos diziam. Então nas aulas de literatura, eu aprendi que muitos bons escritores mal ganhavam dinheiro pra se sustentar e viviam na penúria. Meu pai dizia que eu ia morrer de fome se continuasse sonhando com bobagem e minha mãe reclamava que eu só vivia com um papel na mão e lavar os pratos que era bom, nada. Passei a ler notícias e a ver telejornal e então decidi que seria jornalista. Eles ganham dinheiro, falam e escrevem bem e todo mundo acredita no que eles falam. Meu pai assinou a Veja e todo domingo eu me acordava cedo pra ler ela toda - ironias da vida.
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Eu, sonhando em ser jornalista. Mas só depois de
estudar Antropologia, consegui ver problemas nessa imagem. |
Quando decidi fazer jornalismo e passei no vestibular, meu pai ficou sem falar comigo - eu deveria fazer Direito. Tentei convencê-lo de que jamais usaria aquelas roupas, mas isso não importava pra ele. O curso de jornalismo foi o episódio mais traumático de minha vida e com muito custo consegui terminar. Descobri que o jornalismo não era nada do que eu pensava e que nele não havia espaço para pessoas que pensavam como eu. Então passei a assistir mais filmes e passei a venerar os documentários. Os documentários me encantavam, por abordar assuntos que não passam na televisão e contar histórias do jeito que eu queria contar como escritora. Eu trabalhava mais de 12 horas por dia e o jornalismo me tirava o tempo das coisas que eu gosto nessa vida - estar com meus amores e amigos, ir à praia, fazer minhas leituras e ver meus filmes. Então decidi que iria voltar a estudar e fazer meu próprio "espelho de ponto", usando sempre as roupas que eu me sentir à vontade pra usar.
Mas, em todos esses sonhos, não havia espaço pra ser mãe. Eu não me imaginava sendo mãe e sempre que alguém me dizia "quando você tiver um filho, vai entender sua mãe", eu respondia que jamais teria filhos e que com 18 anos eu sairia de casa sem passagem de volta. Óbvio que todas as tiazinhas ficavam horrorizadas, mas minha mãe já estava acostumada com meu jeito. Nem se dava mais ao trabalho de falar nada. E hoje vejo que não cheguei perto de sequer realizar metade dos meus sonhos, não consegui fugir da realidade que tanto queria e virei mãe. Não virei rumbeira ou malabarista, nem marinheira ou escritora, mas agora estou aqui contando uma história "boba" de mãe. Não assimilei esse sonho tão clichê de ser esposa, dona de casa e mãe. Mas sou mãe por escolha, porque em algum momento decidi ser, e não por obrigação ou "dom divino". E talvez por isso ele não tinha tido tanto espaço nos sonhos antigos. E que coisa boa pode ser não realizar os sonhos.
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