quarta-feira, 5 de março de 2014

"Coisa de menino" e "coisa de menina": remando eternamente contra a maré

Não é nada fácil criar uma criança. Mais difícil ainda é exercer a pedagogia do que você acredita quando se rema contra a maré. Criticar, questionar e combater relações de gênero que consideramos opressoras ou humilhantes é um desafio diário, principalmente porque são os nossos ensinamentos em contraponto às observações da criança sobre outras pessoas a todo momento. Por mais que às vezes pensemos nisso, não dá pra criar os filhos numa bola de cristal e tudo aquilo que combatemos ou queremos evitar no caminho deles inevitavelmente aparecerá em vários momentos da vida. Portanto, melhor que evitar o embate é ensiná-los a lidar com isso e fazer suas próprias observações a partir das contradições que aparecem.

Há algumas semanas, venho percebendo que minha filha cria diálogos com as bonecas soltando frases como "isso é coisa de menina", "mulher não conserta nada" e, o mais grave de todos, "quero comer menininhas", com um fantoche do Visconde de Sabugosa na mão (logo o Sabugosa, gente). Entre as relações que ela desenvolve na escola, no parquinho do condomínio e com outras crianças da família, essas frases são mais do que comuns - são o reflexo do que muitas crianças aprendem em suas casas e em outros ambientes sobre o que seria a atribuição de tarefas "para mulher" e "para homens". Aquelas frases típicas que ouvimos na rua ou em eventos de família e não retrucamos para não criar mal estar.

Quando eu ouvi essa máxima colocada na boca do Sabugosa, parei o que estava fazendo no computador e me virei para ela. Olhos nos olhos, eu perguntei se ela acha que as "menininhas" são comida e se alguma vez na vida ela já viu uma pessoa comendo a outra. Expliquei que o que a gente come é o que se coloca na boca, como arroz, feijão, macarrão, tomate etc. As pessoas não são comida, elas brincam, amam, sorriem, vão à praia, mas não comem outras pessoas. Não tenho dúvidas que, ao soltar a expressão, ela não tinha noção do que significa a expressão "comer" nesse contexto, mas a conversa é válida para que ela não repita e exerça o combate sempre que a ouvir - com argumentos.

A velha questão das bonecas


A fotógrafa canadense Arlle Sebryk divulgou fotos de seus filhos brincando de boneca e diz que isso pode torná-los pais mais participativos
Por duas vezes, ela tentou brincar com dois amigos no parquinho dividindo suas bonecas com eles. Um deles, de cinco anos, se animou, propôs brincar de pai e mãe e saiu animado empurrando o carrinho da boneca. A mãe dele logo gritou e advertiu que quem brinca de boneca é menina, mas ele insistiu que queria. Não gosto de me intrometer na pedagogia alheia, mas pela proximidade que eu tinha com ela, me atrevi a opinar. Disse que achava isso uma bobagem, que ele não ia mudar em nada por brincar de boneca e que um dia ele poderia ser pai também, ou seja, a representação da paternidade na brincadeira não era absurda. Evangélica extremista, ela se limitou a dizer que não gostava. Respondi apenas que era uma pena cortar bruscamente a criatividade da brincadeira por algo que não valia à pena.


"A boneca de William", um livro de Chatlotte Zolotow,
fala sobre os dilemas de um menino que só queria ter uma boneca

Na outra oportunidade, com outro menino, ainda saíamos do apartamento, quando ela disse: "Vou pegar duas bonecas, uma pra mim e outra pra fulano". Eu já sabia a resposta que ela iria receber, mas não disse nada. Achei que ela tinha que receber a resposta e sentir a frustração para depois se indignar - algo que eu também sabia que iria acontecer. E aí sim, eu conversaria com ela. E foi exatamente assim: ela chegou animada chamando o menino de longe e falando que havia levado a boneca só pra brincar com ele. Ele olhou com cara de desdém e disse que não podia brincar de boneca. Como eu previa, ela ficou com raiva e veio falar comigo: "Mãe, fulano não quis pegar minha neném, não disse obrigado e não quer brincar comigo". Então lhe expliquei que as pessoas às vezes deixam de brincar com outras por motivos bobos, mas elas é que estão perdendo a oportunidade de viver bons momentos de diversão com pessoas tão generosas como ela. Que ela jamais se convença de que brincar de boneca é coisa de menina, porque não existe "coisa de menina" e "coisa de menino". E disse que ela poderia responder dessa maneira sempre que alguém dissesse o contrário.

A fotógrafa canadense Arlle Sebryk divulgou fotos de seus filhos brincando de boneca e diz que isso pode torná-los pais mais participativos

No livro "A boneca de William", de Chartlotte Zolotow, o personagem principal sofre um dilema porque gosta de brincar de bonecas. Se ainda hoje essa ideia incomoda tanta gente, imagina quando o livro foi escrito, em 1972. Em um país de ranço ainda tão machista e racista, por que não caminhamos no sentido de transformar certas práticas e alguns discursos pra finalmente promover algum elemento de igualdade? Questionamos a conduta de muitos homens que são desatenciosos, frios e não participam das tarefas domésticas, mas na hora de criar nossos filhos ensinamos que valores como carinho, sensibilidade e atenção são coisas de mulher.

Desconstruir essas relações enraizadas que criam caixinhas para encaixar "coisas de mulher" e "coisas de homem" é um exercício permanente. Mas a única 'arma' que temos contra toda essa opressão ideológica é o nosso próprio combate ideológico. E temos que ir até o fim!

Um comentário:

  1. Acho que mais do que ensinar que não existe coisas de meninos e coisas de meninas temos um desafio imenso de ensinar que na verdade somos diversos, diferentes e cada qual um mundo mas temos q respeitar o outro e viver em comunidade...caminhamos a passos vagarosos...lentos e modestos enquanto sociedade... basta pensar que ainda temos que reclamar espaço para a mulher numa sociedade que já tem que lidar com a violência real aos homossexuais!

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