"No
dia em que foi convidada para apresentar sua família na seção Família É Tudo,
Karine Oleskovicz se sentiu reconhecida, quase como se estivesse conquistando o
diploma de mãe em tempo integral. No dia em que falamos com ela, o marido,
Dimas André Milcheski, tinha acabado de receber seu diploma de pós-doutorado,
enquanto ela não tinha nenhum diploma de especialização para pendurar na
parede. Agora, pode pendurar esta matéria."
Foi
com um misto de angústia e indignação que li a abertura de uma matéria
intitulada "Babá só no fim de semana!", no site da Revista Pais & Filhos. A matéria destaca a felicidade e a grande conquista que representa para
a mulher que abandonou sua vida profissional para ser "mãe em tempo
integral", a liberdade de poder sair aos finais de semana graças à
possibilidade de contratação de uma babá. Muitos pontos me incomodaram nessa
matéria.
Em
primeiro lugar, embora seja o ponto norteador desse relato, a babá em questão
não tem nome e não se apresenta fotograficamente como a família. "Graças a
ela", hoje a família sorri mais, aproveita mais a vida, mas ela continua
na subordinação do anonimato escrito e visual. Ela ajuda a família, mas não faz
parte dela. A invisibilidade da babá na matéria nos dá a clara indicação do
real papel que ela ocupa na rotina da família-perfeita.
Outro
ponto interessante é a supervalorização do modelo de mãe perfeita - aquela que
consegue se contrapor à suposta modernidade e opta por deixar sua vida
profissional em segundo plano para cuidar dos filhos. Ela não tem os mesmos
diplomas do marido, ressalta a matéria, mas o diploma de "mãe em tempo
integral", ela pode pendurar na parede. E foi "longe da família e dos
amigos" que ela optou por se expor como modelo de mãe. A matéria também
exalta as conquistas profissionais do marido e as medalhas conquistadas pelo
filho graças ao apoio da super mãe-modelo em tempo integral. Antes de
continuar, quero deixar claro que essa não é uma crítica às mulheres que optam
pela maternidade exclusiva, pois acredito que a maternidade é uma escolha e,
como tal, deve ser vivida segundo o modo de vida que a própria mulher escolhe
para si.
O retrato da família perfeita - sem espaço para a babá sem nome |
O
que me inquieta é essa supervalorização da mãe em tempo integral por parte da
mídia. O que está por trás disso? No livro "O Conflito - a mulher e
mãe", a filósofa Elisabeth Badinter* retoma os discursos que tentam tomar
para si a subjetividade feminina, alegando o clichê de que o que a mulher quer,
na verdade, é um homem para chamar de seu, uma casa, filhos e um casamento
feliz. Badinter questiona o que ela chama de "ideologia
maternalista", ou seja, o tão propalado "desejo feminino de ser
mãe", um verniz discursivo que a todo momento tenta insistir à mulher que
esse é o seu lugar.
"Que
as mulheres sejam vítimas da ideologia da maternidade significa dizer que não
questionam a escravização voluntária ao lar e à família. O algoz é o inocente
bebê, ele mesmo construído como objeto da suposta "natureza maternal da
mulher". Nesta ideologia, o amor materno é tratado como um dogma inquestionável
da subjetividade daquela que não deseja mais nada além de ser a mãe perfeita.
No maternalismo, o filho é visto como se não fosse um ser social ligado também
ao pai, aos outros membros da família e da sociedade. Se a mãe deve ser
infalível, necessariamente será culpada do que acontecer com seu filho caso ela
não se comporte como impõe a regra. Claro que nesta ideologia não se leva em
conta que existem tantas mulheres quantos desejos, que cada pessoa é um
indivíduo singular".
Indo
mais além, eu diria que nós somos não apenas vítimas dessa "ideologia
maternalista", mas conseguimos ir mais além e reproduzi-la, colocando-nos
nós mesmas como protagonistas. Além de abraçar com fervor a máxima do modelo de
mãe perfeita, absorvemos também os sentimentos que inevitavelmente percorrem
aqueles que não conseguem se adequar ao modelo: a frustração.
Mães
que optam por trabalhar fora, por seguir carreira acadêmica, que matriculam seu
filho em tempo integral na escola ou na creche, que não têm tempo para fazer o
dever de casa todos os dias, que vêm seu filho ficar doente e se culpam por
tê-lo levado ao frio ou por não ter desligado o ventilador na hora certa, por
não conseguir convencê-lo a comer na hora das refeições... qualquer
acontecimento banal na rotina da criança é motivo para que a mãe se
culpabilizar e transfira para si todo o sentimento de frustração. Frustração
por não sentir o desejo de ser mãe ou por querer e não conseguir engravidar,
frustração por não ser perfeita, frustração por não conseguir seguir ter um
certificado de mãe em tempo integral, assim como a Karine Oleskovicz. A
Karine é uma mãe tão perfeita que até saiu na Revista Pais & Filhos, olha
só.
O
que está em jogo são as diversas tentativas que se colocam de mostrar à mulher
que a maternidade é o seu caminho "natural" e que por mais que ela
tenha projetos pessoais, sonhos, anseios, individualidade... a maternidade deve
estar em primeiro lugar. "Essa ideologia, que prega simplesmente a volta a
um modelo tradicional, pesa fortemente sobre o futuro das mulheres e suas
escolhas", afirma a Elisabeth Badinter.
Pesa
sobre a memória também. Se por um lado convivemos com a instituição religiosa
tentando a todo momento guiar as rédeas da reprodução feminina, por outro temos
o discurso biomédico historicamente interferindo sobre o corpo feminino e de
que maneira deve se comportar um corpo reprodutivo. Se por um lado conquistamos
o direito à dissociação entre sexo e reprodução, através dos contraceptivos,
por outro, os discursos ideológicos que nos tentam empurrar o "instinto
materno" como um fator natural e, portanto, impassível de discussão e
desconstrução, são muito mais eficientes que qualquer outra ferramenta de
poder. Ai daquela que ouse não querer ter filhos. Ai daquela que não coloque a
maternidade como um diploma de tempo integral para pendurar na parede. Ai
daquela que "a natureza secou" e decidiu buscar um tratamento de
inseminação artificial. Ai daquela que abortar. Ai daquela que simplesmente
queira ser mulher, além de mãe. A elas cabe o estigma.
Elisabeth Badinter |
No
mais, cabe uma reflexão acerca das escolhas que fazemos para nós mesmas. Mais
do que isso, "cabe perguntar se o apelo sempre renovado do instinto
materno, e dos comportamentos que ele pressupõe, não é o pior inimigo da
maternidade".
*Sugestão de leitura:
BADINTER, Elisabeth. O Conflito - A mulher e mãe. Rio de Janeiro: São Paulo: Editora Record, São Paulo, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário