quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Ideologia maternalista": projeto ideal ou inimigo da maternidade?

"No dia em que foi convidada para apresentar sua família na seção Família É Tudo, Karine Oleskovicz se sentiu reconhecida, quase como se estivesse conquistando o diploma de mãe em tempo integral. No dia em que falamos com ela, o marido, Dimas André Milcheski, tinha acabado de receber seu diploma de pós-doutorado, enquanto ela não tinha nenhum diploma de especialização para pendurar na parede. Agora, pode pendurar esta matéria."       

Foi com um misto de angústia e indignação que li a abertura de uma matéria intitulada "Babá só no fim de semana!", no site da Revista Pais & Filhos. A matéria destaca a felicidade e a grande conquista que representa para a mulher que abandonou sua vida profissional para ser "mãe em tempo integral", a liberdade de poder sair aos finais de semana graças à possibilidade de contratação de uma babá. Muitos pontos me incomodaram nessa matéria.

Em primeiro lugar, embora seja o ponto norteador desse relato, a babá em questão não tem nome e não se apresenta fotograficamente como a família. "Graças a ela", hoje a família sorri mais, aproveita mais a vida, mas ela continua na subordinação do anonimato escrito e visual. Ela ajuda a família, mas não faz parte dela. A invisibilidade da babá na matéria nos dá a clara indicação do real papel que ela ocupa na rotina da família-perfeita.


O retrato da família perfeita - sem espaço para a babá sem nome
Outro ponto interessante é a supervalorização do modelo de mãe perfeita - aquela que consegue se contrapor à suposta modernidade e opta por deixar sua vida profissional em segundo plano para cuidar dos filhos. Ela não tem os mesmos diplomas do marido, ressalta a matéria, mas o diploma de "mãe em tempo integral", ela pode pendurar na parede. E foi "longe da família e dos amigos" que ela optou por se expor como modelo de mãe. A matéria também exalta as conquistas profissionais do marido e as medalhas conquistadas pelo filho graças ao apoio da super mãe-modelo em tempo integral. Antes de continuar, quero deixar claro que essa não é uma crítica às mulheres que optam pela maternidade exclusiva, pois acredito que a maternidade é uma escolha e, como tal, deve ser vivida segundo o modo de vida que a própria mulher escolhe para si. 

O que me inquieta é essa supervalorização da mãe em tempo integral por parte da mídia. O que está por trás disso? No livro "O Conflito - a mulher e mãe", a filósofa Elisabeth Badinter* retoma os discursos que tentam tomar para si a subjetividade feminina, alegando o clichê de que o que a mulher quer, na verdade, é um homem para chamar de seu, uma casa, filhos e um casamento feliz. Badinter questiona o que ela chama de "ideologia maternalista", ou seja, o tão propalado "desejo feminino de ser mãe", um verniz discursivo que a todo momento tenta insistir à mulher que esse é o seu lugar.

"Que as mulheres sejam vítimas da ideologia da maternidade significa dizer que não questionam a escravização voluntária ao lar e à família. O algoz é o inocente bebê, ele mesmo construído como objeto da suposta "natureza maternal da mulher". Nesta ideologia, o amor materno é tratado como um dogma inquestionável da subjetividade daquela que não deseja mais nada além de ser a mãe perfeita. No maternalismo, o filho é visto como se não fosse um ser social ligado também ao pai, aos outros membros da família e da sociedade. Se a mãe deve ser infalível, necessariamente será culpada do que acontecer com seu filho caso ela não se comporte como impõe a regra. Claro que nesta ideologia não se leva em conta que existem tantas mulheres quantos desejos, que cada pessoa é um indivíduo singular". 

Indo mais além, eu diria que nós somos não apenas vítimas dessa "ideologia maternalista", mas conseguimos ir mais além e reproduzi-la, colocando-nos nós mesmas como protagonistas. Além de abraçar com fervor a máxima do modelo de mãe perfeita, absorvemos também os sentimentos que inevitavelmente percorrem aqueles que não conseguem se adequar ao modelo: a frustração.

Mães que optam por trabalhar fora, por seguir carreira acadêmica, que matriculam seu filho em tempo integral na escola ou na creche, que não têm tempo para fazer o dever de casa todos os dias, que vêm seu filho ficar doente e se culpam por tê-lo levado ao frio ou por não ter desligado o ventilador na hora certa, por não conseguir convencê-lo a comer na hora das refeições... qualquer acontecimento banal na rotina da criança é motivo para que a mãe se culpabilizar e transfira para si todo o sentimento de frustração. Frustração por não sentir o desejo de ser mãe ou por querer e não conseguir engravidar, frustração por não ser perfeita, frustração por não conseguir seguir ter um certificado de mãe em tempo integral, assim como a Karine Oleskovicz. A Karine é uma mãe tão perfeita que até saiu na Revista Pais & Filhos, olha só. 

O que está em jogo são as diversas tentativas que se colocam de mostrar à mulher que a maternidade é o seu caminho "natural" e que por mais que ela tenha projetos pessoais, sonhos, anseios, individualidade... a maternidade deve estar em primeiro lugar. "Essa ideologia, que prega simplesmente a volta a um modelo tradicional, pesa fortemente sobre o futuro das mulheres e suas escolhas", afirma a Elisabeth Badinter. 


Elisabeth Badinter
Pesa sobre a memória também. Se por um lado convivemos com a instituição religiosa tentando a todo momento guiar as rédeas da reprodução feminina, por outro temos o discurso biomédico historicamente interferindo sobre o corpo feminino e de que maneira deve se comportar um corpo reprodutivo. Se por um lado conquistamos o direito à dissociação entre sexo e reprodução, através dos contraceptivos, por outro, os discursos ideológicos que nos tentam empurrar o "instinto materno" como um fator natural e, portanto, impassível de discussão e desconstrução, são muito mais eficientes que qualquer outra ferramenta de poder. Ai daquela que ouse não querer ter filhos. Ai daquela que não coloque a maternidade como um diploma de tempo integral para pendurar na parede. Ai daquela que "a natureza secou" e decidiu buscar um tratamento de inseminação artificial. Ai daquela que abortar. Ai daquela que simplesmente queira ser mulher, além de mãe. A elas cabe o estigma.

No mais, cabe uma reflexão acerca das escolhas que fazemos para nós mesmas. Mais do que isso, "cabe perguntar se o apelo sempre renovado do instinto materno, e dos comportamentos que ele pressupõe, não é o pior inimigo da maternidade". 


*Sugestão de leitura: 
BADINTER, Elisabeth. O Conflito - A mulher e mãe. Rio de Janeiro: São Paulo: Editora Record, São Paulo, 2011.


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