segunda-feira, 21 de abril de 2014

As dores do parto no Brasil

As inúmeras denúncias de descaso no atendimento ao parto no Brasil e de violência obstétrica, além de dados alarmantes, são o fio condutor da reportagem de capa do jornal Brasil de Fato desta semana - 16 a 20 de abril de 2014. A série As dores do parto no Brasil elucida, através de seis matérias, mitos, medos, absurdos e o sinistro panorama do ato de parir em hospitais e maternidades públicas de todo o Brasil.

"Nos últimos 60 ou 70 anos, o que será que aconteceu para que nós, mulheres, deixássemos de acreditar que somos capazes de parir sem grandes intervenções externas?", engata a enfermeira obstétrica Edymara Medina, da Casa de Parto David Capistrano Filho, no Rio de Janeiro.


Foto: BBC
Dados

Os dados divulgados pela série de reportagens são assustadores:

- Entre 70% e 80% das brasileiras que passaram pela cesárea desejavam, na realidade, partos vaginais, segundo o artigo Unwanted caesarean sections among public and private patients in Brazil;

- O Brasil possui a maior taxa de cesarianas do mundo - 52,3%, sendo 38% no setor público e 80% no setor privado. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que a taxa razoável é de 15%.

- 25% das brasileiras relataram ter sofrido algum tipo de violência durante o atendimento ao parto - atitudes que incluem xingamentos, gritos, realização de procedimentos dolorosos sem aviso ou consentimento e o impedimento da presença de acompanhane, garantida pela legislação brasileira.

- A mortalidade materna no Brasil é de 78 para cada 100 mil nascidos vivos, segundo dados do Ministério da Saúde (MS) - na Suécia, esse número é de 4 para cada 100 mil.

- A mortalidade neonatal no Brasil é de 10 mortes para cada mil nascidos vivos - número de 2011 -, segundo a Revista Poli - Saúde, Educação e Trabalho).

As "desnecesáreas" e a situação no Brasil



Foto: Zanone Fraissat/Folhapress
Em uma das matérias, intitulada "O problema das 'desnecesáreas", os relatos dos médicos são claros quanto às razões pelas quais o Brasil é campeão tanto no tocante à realização de partos cesareanos desnecessários quanto à concretização da chamada violência obstétrica. "Sabemos que um trabalho de parto pode levar mais de 12 horas. Em geral, os planos pagam R$ 300, R$ 400 ou até menos para o médico acompanhar um parto, enquanto, na cesárea, ele ganha praticamente o mesmo valor para no máximo duas horas de trabalho", afirma a obstetra Vera Fonseca, conselheira do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj).

Mas a questão financeira não é o único combustível que move os médicos e sua relação com os pacientes. A comodidade e a praticidade também têm seus valores embutidos no pacote. "Uma gestante normalmente terá seu bebê entre as 37 e 42 semanas de gravidez. Se o médico tem quatro gestantes por mês - e, normalmente, há muito mais que isso -, não tem um fim de semana em que pode tomar uma cerveja, viajar, porque qualquer uma delas pode entrar em trabalho de parto. E o médico é um ser humano: come, dorme, viaja, tem família. É claro que, mesmo sendo uma conduta errada, ele vai acabar tentando acomodar o parto dentro de sua agenda", reflete a também obstetra Carla Polido, professora na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Modelo hospitalizado e intervencionista



É incontestável que o sistema de atendimento médico no Brasil reflete um modelo altamente intervencionista, hospitalocêntrico e medicalizado. A obstetra Carmen Diniz (autora da tese de doutorado Humanização: os muitos sentidos de um movimento) explica que a execução desse modelo no Brasil inclui uma série de usos 'irracionais' da tecnologia no parto - isto é, o uso abusivo de intervenções de alto custo e que não melhoram em nada os resultados. Por sua vez, a também obstetra e professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Melania Amorim, admite que o intervencionismo é a base da formação médica no Brasil.

"Tive uma formação intervencionista, como a maioria dos colegas. Quando entrei no mestrado, comecei a estudar profundamente práticas que vinha exercendo há muito tempo. Precisei 'sair' um pouco da medicina e estudar antropologia e filosofia para entender isso", diz a obstetra, que cita a episiotomia (corte realizado no períneo da mulher, com a justificativa de facilitar a saída do bebê) como uma dessas práticas. "Fui estudar como esse procedimento surgiu e me assustei ao descobrir que ele nasceu de forma arbitrária, sem nenhuma evidência de que fosse efetivo, e passou a ser difundido no século 20 com base na crença de que nosso corpo é essencialmente defeituoso e há a obrigatoriedade da intervenção", completa Melania.


Episiotomia

Menos intervenções


Países como o Canadá, a Alemanha, a Suécia e a Holanda apresentam indicadores que, de longe, são melhores do que os do Brasil no que se referem ao parto e à assistência médica. Mas, o que há de diferente entre cada território? Segundo a reportagem intitulada "Experiência internacional", são países com modelos menos intervencionistas nos cuidados com o corpo e a saúde da população - o que se reflete na hora de parir.

"Uma pesquisa publicada na British Medical Journal analisou 150 mil holandesas que pariram entre 2004 e 2006 e mostrou que, em casa (com partos assistidos por profissionais), ocorreu uma complicação a cada mil nascimentos, enquanto, no hospital, foram 2,3 por mil. A assistência obstétrica no país é realizada por parteiras - cuja formação, no Brasil, corresponderia à de obstetrizes ou EOs - que só encaminham a parturiente para o cuidado médico em caso de complicações. A taxa de cesariana no país e de 15%".

Segundo a obstetra Melania Amorim, a diferença principal entre os médicos e as enfermeiras obstetrizes (pelo menos no Brasil) está na formação. Enquanto o médico é formado para encarar a gestante como um corpo patológico e que necessita de intervenções extremas, a obstetriz tem uma visão do parto mais fisiológica e estuda disciplinas como Antropologia, História e Sociologia na sua formação básica. "Essa base faz toda a diferença", diz Melania.

Parto extra-hospitalar


Foto: Kalu Brum
Para muitos médicos brasileiros, o parto realizado fora do hospital é considerado perigoso, segundo a matéria intitulada "Conselhos de Medicina contra as evidências". Os depoimentos de alguns médicos são, inclusive, assustadores: "A OMS [...] dá essas ordens porque lá na África eles estão longe de ter um médico para cada milhão de habitantes. Então a OMS acaba falando isso, que pode ter qualquer um para ajudar no parto. [...] Ela não está preocupada com países ricos, desenvolvidos, mas com o que acontece na África", afirma a obstetra Vera Fonseca.

A jornalista (Raquel Torres) questiona se ela conhece a atuação das parteiras em países considerados ricos e desenvolvidos, ao que ela responde: "Sim, mas não podemos comparar Finlandia e Suécia com o Brasil. Primeiro pela própria quantidade de nascimentos, que é menor. E segundo, porque as estruturas dos lugares onde se faz isso [Casas de Parto ou domicílios] é muito melhor, tem o fator da proximidade do hospital. [...] No Brasil tem engarrafamento. Como é o trânsito na Suécia?", questiona a obstetra.

Sem a presença de médicos, as Casas de Parto recebem as gestantes através das enfermeiras obstetrizes e das obstetrizes - são consideradas uma das alternativas possíveis para a humanizacao do parto no Brasil. Segundo a tese de Carmen Diniz, há estudos que comprovam que as Casas de Parto são um recurso seguro, com boa aceitação pelas mulheres e os desfechos são bastante positivos - cerca de 10% das gestantes precisam ser transferidas durante o trabalho de parto.

Desapossamento
As mulheres sempre foram protagonistas dos cuidados com o seu próprio corpo. Até poucos anos (a geração de nossas avós, por exemplo), a maioria dos partos eram realizados em casa, com a ajuda de parteiras e sem nenhuma intervenção médica/hospitalar - foi assim que nossas mães nasceram. No artigo intitulado "Os silêncios do corpo da mulher", Michelle Perrot explica o processo de desempossamento do próprio corpo para a medicina e, mais especificamente, a medicina ginecológica e obstetrícia.

"Primeiramente, elaboram-se novos saberes sobre o corpo. Nesse aspecto, a mulher tinha vastos conhecimentos empíricos dos quais era depositária, ela se encarregava dos cuidados do corpo, da saúde e da doença, do nascimento à morte. Exercia um poder médico considerável, por vezes temido, a ponto de ser uma das acusações apresentadas contra as feiticeiras, objeto de verdadeiras perseguições na França e na Europa, sobretudo no século XVII."



Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

Medidas para conter o declínio da natalidade em países como a França, o disciplinamento do exercício da maternidade por parte de uma nova pediatria (principalmente no quesito amamentação) e o recuo da mortalidade infantil e materna são novos fatores considerados vantajosos e benéficos à coletividade. No entanto, a mão da medicina interventiva retirando da mulher o poder sobre seus próprios cuidados tem outros fatores por trás de si.

"[...] elas (as mulheres) provaram uma sensação de desapossamento e de submissão a uma ordem médica masculina que também se propunha a controlá-las."

Empoderamento do corpo

Casos mais recentes, como o de Adelir Carmem Lemos de Góes, 29 (moradora de Torres, no Rio Grande do Sul, que foi obrigada pela Justiça a realizar uma cesárea), são sintomáticos no tocante ao nível de intervenção médica e hospitalar sobre o corpo da mulher e, principalmente, da mulher grávida. A Justiça, o Estado e o corpo médico apropriam-se de uma maneira inquestionável sobre "a vida" e "os direitos" do nascituro de maneira a invadir os desejos, vontades, anseios e direitos da própria parturiente.

Foto: Avener Prado/Folhapress
Ao mesmo tempo, outro caso mais recente ainda, uma jovem procurou o Hospital Maternidade de Santo Amaro, na cidade de mesmo nome, no interior da Bahia, e encontrou as portas fechadas. Sem opção, teve que parir na calçada, enquanto outras pessoas batiam na porta da maternidade, sem êxito.  A grande contradição do sistema hospitalocêntrico no Brasil é essa disparidade de assistência: ao mesmo tempo em que obriga as mulheres - e, principalmente, as parturientes - a se adequarem ao modelo intervencionista de parto atualmente em vigor, apresenta uma das piores estruturas e inegável precariedade no atendimento médico.

Por isso, ao contrário de uma época em que a maternidade era negada como pauta necessária de diversos movimentos feministas, hoje o parto humanizado e a luta contra a violência obstétrica são centrais em vários coletivos de mulheres, mães e feministas. Apropriar-se do próprio corpo, retomar o protagonismo do conhecimento e dos próprios cuidados com a saúde hoje são bandeiras do feminismo contemporâneo. Não é à toa que o questionamento quanto às desnecessárias intervenções no parto têm partido de obstetras mulheres - totalidade das fontes de informação da série de reportagens do jornal Brasil de Fato divulgada essa semana. Também não é à toa que o movimento de formação de doulas tem se tornado cada vez mais forte no Brasil e rodas de gestantes, realizadas em vários estados, têm se encarregado de cumprir um trabalho que, infelizmente, ainda é considerado exclusividade médica: disseminar informações e estimular o conhecimento sobre o próprio corpo.



Foto: Zanone Fraissat/Folhapress
E, para esclarecer, não se trata aqui de negar a importância da medicina nos cuidados com o corpo e com a saúde, mas de minimizar a medicalização desnecessária que tem caracterizado a atenção à saúde nos tempos atuais. Como afirma a própria enfermeira obstetriz Edymara Medina na série de reportagens do Brasil de Fato, "não se trata simplesmente de voltar ao passado e deixar que as mulheres tenham seus filhos sem assistência adequada ao parto, mas sim rever certos procedimentos que se mostram ineficazes e desnecessários".

Obs.: As imagens de protesto foram registradas no ato "Somos todas Adelir - Ato contra a violência obstétrica", realizado em frente à Faculdade de Direito da USP, no Largo do São Francisco, após o caso Adelir, forçada a fazer uma cesariana na cidade de Torres, no Rio Grande do Sul.
 
 

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