sábado, 10 de maio de 2014

Não deseje Feliz Dia das Mães para mães sem direitos

Esqueça as mães da C&A, Renner, Boticário, Natura e similares. Aquelas mulheres brancas, bem maquiadas, de cabelos alisados, roupas claras, sempre meigas e emocionadas com o presente mais caro das lojas nem de longe representam o sofrimento de tantas mães que vivem em um país economicamente desigual, machista, racista, preconceituoso e penal como o Brasil.

Charge de Carlos Latuff.
Enquanto as mães de classe média destacadas pelas colunas sociais como "bem nascidas" publicam fotos alegres com suas famílias em fartos almoços do Dia das Mães, outras mães continuam chorando e lutando para que os preconceitos de uma classe média "bem nascida" parem de pedir mais polícia que matam seus filhos e suas mães, para que mega eventos e projetos de desenvolvimento bem alardeados pela mídia parem de expulsá-las de suas casas e para que um dia possam simplesmente viver.

Manifestantes no ato "A paixão de Cláudia", em homenagem
a Cláudia Ferreira no dia 18 de abril, em São Paulo. 
Enquanto defendermos a luta armada contra as drogas e a ação policial militarizada nas favelas, não temos o direito de desejar Feliz Dia das Mães aos filhos de Cláudia Ferreira da Silva e à mãe de Douglas Pereira (DG). Enquanto ensinarmos aos nossos filhos noções de intolerância religiosa como a ideia de que religiões de presença africana são "coisa do demônio", seremos eternamente cúmplices de mitos e boatos preconceituosos que motivam a "caça às bruxas" que culminou na morte de Fabiane de Jesus, acusada de praticar "magia negra". Uma cultura que é intolerante às diversas formas de crença e alimenta boatos como esse para criminalizar outras religiões não terá nunca o direito de desejar Feliz Dia das Mães às filhas de Fabiane.

Maria de Fátima (mãe de Douglas Pereira) e Deize Carvalho (mãe de André Luiz)
perderam seus filhos pela violência do Estado.

Jaílton e as filhas Yasmin e Ester - família de Fabiane Maria de Jesus,
assassinada por um mito que cerca a intolerância religiosa.
Foto: Marcos Alves/O Globo.
Enquanto fecharmos os olhos para o extermínio da juventude negra nas periferias, não temos o direito de desejar Feliz Dia das Mães a nenhuma mulher negra e pobre, que todos os dias dorme e acorda com medo de seu filho ser linchado, "confundido com um bandido" e não voltar mais para casa. Enquanto defendermos que "bandido bom é bandido morto", sem que as pessoas tenham o direito de se defender legalmente, seremos eternamente cúmplices da violência urbana e estatal, contra culpados e inocentes.

Mãe tenta defender seu filho da ação policial nas favelas.
Foto: Eduardo Naddar/Agência O Dia
Uma nação que toma Rivotril para dormir, mas acha que maconha é droga e que seu uso deve continuar sendo crime, não tem o direito de desejar Feliz Dia das Mães a Selma Ferreira, que perdeu seu filho Vitor Hugo, de 12 anos em Cuiabá, Mato Grosso. Com crises sucessivas de epilepsia, Vitor dependia de um medicamento feito à base de canabidiol (CBD), substância encontrada na cannabis sativa (popularmente conhecida como maconha) para sobreviver. Mas, depois de percorrer consultórios em busca de médicos que aceitassem prescrever o remédio e órgãos jurídicos em busca de liberação para a compra do medicamento, Selma teve que enterrar seu filho na semana passada. Selma não teve o direito de medicá-lo porque vive em uma sociedade que se julga no direito de dizer a ela que o uso da maconha é crime. Mas essa mesma sociedade, cheia de valores e de "cidadãos de bem preocupados com a lei", não tem o direito de desejar a ela Feliz Dia das Mães.

Selma Ferreira não conseguiu a liberação do medicamento a tempo de salvar seu filho.
Foto: Anselmo Carvalho Pinto
Essa mesma sociedade que apoia a ação militar contra as drogas não tem o direito de desejar Feliz Dia das Mães a nenhuma das mulheres guerreiras que dão a cara pra bater e levam seus filhos à Marcha da Maconha, porque querem ter o direito de viver em uma sociedade livre e poder medicar seus filhos, para evitar a próxima convulsão.

Ala das mães na Marcha da Maconha do Rio de Janeiro.  
Foto: Fernanda Rouvenat/G1
Enquanto defendermos as ações de desenvolvimento econômico que esbarram em direitos sociais, não temos o direito de desejar Feliz Dia das Mães às Mães da Maré, às Mães de Itaquera, às Mães do Pinheirinho, às Mães Quilombolas, às Mães indígenas e todas aquelas que lutam pra ter um pedaço de terra pra plantar e uma moradia decente. Mas são ignoradas pela "necessidade" de modernização e de megaeventos como a Copa do Mundo.

Famílias montam barraca na Ocupação "Copa do Povo", em Itaquera.
Foto: Peter Leone/Futura Press.
Enquanto você defender a ação militarizada da polícia contra os jovens pobres e negros, enquanto defender que a diversidade religiosa é coisa do demônio, que as mulheres que usam roupas curtas merecem ser estupradas, que o uso de maconha deve continuar sendo crime, que os cabelos crespos são "ruins" e devem ser alisados, eu e minha filha seremos eternamente estigmatizadas pelo seu preconceito. Por isso, não me deseje Feliz Dia das Mães com um sorriso racista, machista, preconceituoso e elitista. Você não tem esse direito.


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