sexta-feira, 23 de maio de 2014

(Não) era só uma pedra

Maria Joana brincava na grama da UFS enquanto eu participava de uma roda de conversa sobre proibicionismo e feminismo. Pedras, plantas, folhas e os gatinhos são a junção de tudo o que ela gosta quando vamos à universidade. Então ela elegeu uma pedra um pouco grande e guardou consigo. Disse que iria levar como presente de aniversário para a prima - que realmente aniversariava no mesmo dia.

Acabada a roda, voltávamos para casa de bicicleta quando, antes mesmo de sair da universidade, percebi que ela mordia alguma coisa. Perguntei o que era e ela permaneceu calada, disfarçando. Parei a bicicleta e, quando olhei para trás, percebi que ela estava com a pedra toda dentro da boca. Num misto de nojo e reprovação, peguei a pedra e joguei longe: "Minha filha, eu não acredito que você colocou isso na boca. Não faz mais isso, vamos pra casa". E voltei a pedalar, embalada pelo choro desesperador dela em busca da pedra - durante todo o percurso, que dura cerca de 15 minutos.

Ouvi a mesma frase incontáveis vezes: "Nós temos que voltar pra pegar aquela pedra, que é a pedra da minha vida e de todo o mundo que eu vou dar pra Caquinha", enquanto eu pedalava fingindo que não ouvia nada e respirando fundo. Voltei o caminho todo calada, enquanto ela gritava muito e repetia a mesma coisa. Se eu disser que não fiquei com raiva, estarei mentindo. É óbvio que qualquer pai e qualquer mãe respira bem fundo pra não agir por impulso e gritar ou bater numa hora como essas. Que pessoa gosta de ter nas suas costas a responsabilidade de controlar uma crise de choro de uma criança, ao mesmo tempo em que fica constrangida no meio de uma cruz inquisidora, com todos ao redor olhando com ares de julgamento?

Mas tentei seguir calada, tranquila e esperando chegar em casa para que enfim pudéssemos conversar. Mas ao chegar em casa, ela deitou na cama e chorou até dormir. É nesses momentos que a gente começa a refletir sobre a situação, pensa se poderia ter agido diferente em algum momento, se pergunta se havia alguma decisão correta a tomar, se não seria melhor ter sido mais rígida na autoridade... um misto de culpa, cobrança e autopunição que só nós conhecemos bem.

Então me lembrei das inúmeras vezes que chegamos em um lugar e ela sempre estabelece uma relação de amizade com as pedras, sai catando todas possíveis e quer levar pra casa. Sempre quer presentear alguém com uma pedra e guarda com carinho até encontrar a pessoa que ela quer presentear. Certa vez, fomos a um cinema da cidade que tem várias pedrinhas coloridas no chão e ela ficou encantada com aquilo. Uma amiga minha então perguntou se eu já tinha ouvido falar nas crianças cristais e disse que minha filha parecia ser uma dessas. Depois compreendi que a criança cristal é um anjo de luz que irradia sensibilidade com relação a tudo em seu meio: plantas, animais, cheiros, conflitos etc. São sensitivas e estão em eterna comunhão com a natureza. Claro que não estamos falando em ciência, pediatria ou algo empírico-positivista, mas numa questão de fé ou algo igualmente subjetivo.


O fato é que sempre admiro a relação que minha filha estabelece com a natureza e refletindo sobre aquele momento, penso que poderia ter agido diferente. Para mim, era uma pedra nojenta que ela havia colocado na boca. Para ela, era mais que uma pedra: ela já tinha estabelecido a relação dela com aquela pedra específica e já havia se tornado um presente para a prima. Continuo achando que agi corretamente ao retirá-la da boca, mas poderia ter guardado na cestinha da bicicleta. Pode parecer uma bobagem, mas acho que poderia ter tido uma atitude menos brusca.

Não tínhamos compromisso, não estava com pressa, estávamos indo pra casa e tínhamos o resto do dia livre. Não seria nada de mais parar a bicicleta, conversar numa boa e ter mais paciência. A gente sempre quer ter paciência, mas penso que a maternidade é um exercício diário. Erramos, aprendemos e talvez mudamos. Sempre penso que posso ter mais paciência e melhorar o diálogo. Depois que ela se acalmou e tirou um cochilo, a chamei para conversar e pedi desculpas, disse que não queria ter jogado a pedra fora, mas agi meio nervosa ao vê-la com a pedra na boca. Ela também pediu desculpas, disse que não ia mais fazer, mas pra cortar meu coração, perguntou: "E agora, o que vamos fazer sem a pedra?".

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