sábado, 25 de janeiro de 2014

Maternidade e violência obstétrica: pautas feministas

Tenho sérios problemas com a ideologia que prega a maternidade como "dom divino" e "caminho natural da mulher". Acredito na maternidade como uma escolha e que só pode ser realizada em sua plenitude quando envolta em um projeto harmônico com base, principalmente, na vontade da mulher. No entanto, por conta do uso da maternidade como ferramente de controle sobre o corpo e a subjetividade da mulher, é muito comum ver grupos feministas distorcendo o exercício da maternidade e resistindo a abraçar bandeiras essenciais à libertação da mulher, tais como a luta contra a violência obstétrica, creches públicas, humanização do parto etc. 

Por isso, me senti bastante contemplada com um texto escrito por várias mãos a respeito da importância de se encarar o ativismo materno como uma legítima reivindicação de cunho feminista. Segue abaixo o texto para leitura e posterior debate - e embate. 


MATERNIDADE E VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: 
PAUTAS FEMINISTAS

"As questões da maternidade não agregam ao feminismo”
Recentemente, um grupo de mulheres fundou a Artemis, organização não governamental que tem como um dos seus objetivos a erradicação da violência obstétrica no Brasil. A Artemis tem promovido atuação efetiva, com presença decisiva no Fórum Mundial de Direitos Humanos e junto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Também recentemente, as ativistas deste grupo foram duramente atacadas, não virtualmente mas presencialmente, no cara a cara, por pessoas que afirmavam não ser a maternidade uma causa feminista. Isso aconteceu no início do mês de dezembro, dias 06 e 07, por ocasião do IV Ciclo de Conferências da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A participação da Artemis em tais conferências se deu no âmbito do Grupo de Trabalho dos Direitos da Mulher, tendo sido representada por 9 delegadas e com o objetivo de pautar o tema “violência obstétrica” como uma das metas da Defensoria Pública de São Paulo para os próximos dois anos.
A Conferência é um espaço da sociedade civil, onde todas as 90 propostas apresentadas devem ser de extrema importância para a sociedade em geral e para o Estado de São Paulo.
Ali estavam propostas importantíssimas para a questão da mulher: funcionamento das delegacias da mulher 24hs/dia, inclusive finais de semana; acolhimento de mães puérperas em situação de rua; criação de casas de passagem e abrigo especializado para mulher em situação de violência; criação de Juizados Especializados em Violência Doméstica; proteção à identidade de gênero; campanhas pela legalização do aborto; atuação na questão da violência obstétrica, entre outros de igual importância. É facilmente perceptível a grande relevância de todas as propostas, as quais, certamente, estão dentro do escopo dos movimentos feministas. E a inserção da violência obstétrica como mais um tema a ser trabalhado e a ser combatido na sociedade é prioritário num contexto do Poder Judiciário onde pouco ou quase nada tem sido feito sobre o assunto.

Após a defesa de nossa proposta, duas delegadas de movimentos feministas da capital paulista se manifestaram contrariamente à inserção da violência obstétrica como violência contra a mulher: uma sugerindo que a questão da maternidade não agrega o feminismo, já que a maternidade, segundo ela, seria “uma forma de controle do patriarcado sobre o corpo da mulher”, e outra sugerindo que as delegadas deveriam votar em questões sérias e não em “questões que ainda estão no imaginário e não acontecem de fato”.

Tais manifestações de negação da violência obstétrica como causa feminista nos causaram brutal perplexidade. Não apenas pelo caráter discriminatório para com milhares de brasileiras que estão sendo violentadas durante o nascimento de seus filhos, como também pelo desconhecimento e desatualização de ambas as delegadas a respeito do tema. Não é possível ignorar dados sérios de pesquisas brasileiras realizados nos últimos três anos e amplamente divulgados nos cenários científico e midiático brasileiros, os quais já mostraram a toda sociedade civil a gravidade da questão. Muito menos desmerecer a violência sofrida por uma a cada quatro mulheres que dão à luz no Brasil, atribuindo a essa violência caráter de “invenção”, de “imaginário”, ignorando mulheres e suas dores.

A despeito de tais manifestações, continuamos nossa atuação enquanto grupo feminista organizado e conseguimos levar a proposta à plenária final. O resultado: a proposta de inserção da violência obstétrica como pauta relevante obteve a segunda maior votação da Conferência, recebendo 43 votos (a primeira recebeu 44, pertencendo à temática do idoso e pessoa com deficiência). É importante mencionar que, nesta conferência, cada delegado tem direito a 9 votos, que podem ser dados à mesma proposta. Nossa proposta somente foi aprovada porque nós, delegadas ativistas, nos articulamos e destinamos grande parte de nossos votos a uma única proposta e, considerando que tivemos apenas 12 votos entre 116 delegados, achamos pouco - e triste. Triste porque o GT do Direito da Mulher possuía cerca de 25 delegadas e nem metade delas entendeu a gravidade do que representa a violência obstétrica enquanto violação do direito à dignidade humana e que precisa urgentemente ser discutida, combatida e, principalmente, erradicada. Triste porque a violência obstétrica que afeta tantas mulheres em nosso país diz respeito ao corpo e ao direito da mulher no momento do parto e, paradoxalmente, justamente por isso não mereceu a atenção dos movimentos feministas. Embora satisfeitas pelo que consideramos ser uma vitória - a inclusão da violência obstétrica como pauta a ser discutida - é profundamente lamentável constatar o alto grau de misoginia presente entre as próprias mulheres, ao se recusarem a tratar a questão da violência obstétrica como violência à mulher. E, por ser violência contra a mulher, é obviamente uma causa feminista.


Feminismo, maternidade e empoderamento

Não sabemos se nesse contexto ou fora dele, alguns dias depois foi publicado no coletivo Blogueiras Feministas o texto “O ativismo materno para além do parto”.
Concordamos com alguns trechos do referido texto. Realmente nos incomoda muito ver/ler/ouvir alguns discursos que se baseiam em julgamentos da mulher que não pariu, ou porque não quis, ou porque não conseguiu, ou porque... sabe-se lá porque... Nós somos do  movimento pela humanização do parto e contra a violência obstétrica e, ainda assim, fazemos essa crítica, apenas porque soa a nós como grande discrepância e incongruência defendermos o direito da mulher de não ser violentada no parto e, ao mesmo tempo, violentarmos outras mulheres com nossos discursos pré-moldados e, por vezes, sem sentido.
Porém, ao começarmos a leitura de tal texto, sentimos algo como o que sentimos quando ouvimos alguém dizer: “Não sou racista, mas....” ou “Não sou machista, mas...”, ou “Acho que mulheres têm direitos, mas...”. À semelhança desse cartoon aqui:
Fonte
Ou seja: ao ler o texto, o qual começa reafirmando a importância do apoio à humanização do parto e ao movimento pela dignidade de parir, já sabíamos que viria um “mas”... E o “mas” que veio em seguida mostrou-se muito parecido com os “mas” mencionados anteriormente e o tom do texto se assemelhou em muito ao ataque sofrido pelas ativistas da Artemis em função do suposto não pertencimento da maternidade à pauta feminista.
O texto “O ativismo materno para além do parto” foi explicitamente direcionado a um blog, cujo nome – “Mulheres Empoderadas” - faz menção ao que viveu a própria autora do blog, que viveu cesáreas indesejadas antes de lutar e conseguir dois partos naturais, porque era esse seu desejo. Claro que sabemos disso porque a conhecemos e as autoras do texto não têm obrigação de saber. Entendemos isso. Mas, do mesmo modo que ninguém tem obrigação de saber disso, também não é possível traçar uma crítica ao que se “pensa” ser, porque isso seria apenas uma de muitas interpretações possíveis da razão do nome. Arriscamos dizer que 90% das mulheres que curtem e “fazem” a página “Mulheres Empoderadas” não se intitulam empoderadas porque defendem e vivem a autonomia da mulher para parir de cócoras, na piscina, sem intervenções ou porque amamentam seus filhos no peito por tantos anos. Não. Intitulam-se assim porque venceram muitas lutas pessoais - e coletivas - para conseguirem fazer isso, lembrando que tudo isso aí representa grandessíssimas exceções no Brasil. Estamos falando de uma minoria. E por que é que o direito de escolha de uma minoria está sendo atacado tantas vezes?
Essas mulheres travaram grandes lutas para conseguirem parir do jeito que queriam e amamentar. Muitas delas foram demitidas por incompatibilidade entre a bombinha de extrair leite e o cartão-ponto. Não são empoderadas porque pariram assim ou assado ou deram o peito, mas por terem enfrentado um sistema nojento, machista e patriarcal para fazer isso. E, muitas vezes, enfrentaram e desafiaram a si próprias, gente que nunca pensou que fosse capaz de dar conta desse tipo de enfrentamento.
O texto tem razão quando diz que mulher empoderada vai muito, mas muito além de parir. E é exatamente isso que queremos dizer aqui: essas mulheres não podem ser resumidas a um corpo que pariu, mas a mulheres que, sim, venceram um sistema esmagador, cruel, violento, humilhante, degradante, onde chegamos invariavelmente como “mãezinhas”, “mamãezinhas”, que não podem gemer ou não gemeram quando fizeram o filho e – SÓ ENTÃO – pariram. Pariram OU NÃO. Porque grande parte, ainda assim, não consegue, porque o que acontece dentro de uma sala de parto é muitas vezes cruel, opressor, indignante e ultrajante. São mulheres recebendo tapas nas pernas de profissionais da saúde. São mulheres proibidas de gemer ou gritar para expressar sua dor porque “pra fazer não gritou nem chamou a mamãe, vai gritar agora?!”. São mulheres amarradas de pernas abertas em estribos frouxos, que caem a todo momento, para receberem exames vaginais de cinco, seis, oito alunos que as tratam como um  número. São mulheres dopadas porque “estão dando trabalho”. São mães que veem seus bebês morrerem logo após o nascimento por má assistência. Estamos falando sobre essas mulheres.
E se, à semelhança dos exemplos citados no texto mencionado, houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que escolheram não ser mães? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que escolheram abortar? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que nasceram com pênis? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por quem nasceu com ovários e vagina mas não se reconhece como mulher? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mães de plantas, mães de gatos, mães de projetos? Faria mais sentido? Seriam empoderamentos mais bem vistos no contexto do “feminismo”? Essa crítica ao uso do “empoderadas” ainda seria feita? Sejamos sinceras: não seria! E não seria porque todas essas “subáreas do empoderamento”, digamos assim, todos esses feminismos, são respeitados e reconhecidos. Mas a maternidade não! A maternidade e o direito das mulheres que se tornam mães não são reconhecidos! A maternidade é um assunto que caiu num limbo que um feminismo específico dos muitos que existem não anda muito a fim de abraçar não... E tem sido assim mesmo considerando que mulheres que se tornam mães tornam-se, também, alvos preferenciais para inúmeras inequidades e violências de gênero. Como ser demitida sem justa causa. Como ser preterida em concursos públicos. Como ser ridicularizada ou tida como “mulherzinha”, “fraquinha”, “mãezinha”. Como ser vista para sempre como subserviente ao ser que colocou no mundo.
Condições gerais da maternidade no Brasil
Mulheres mães brasileiras vivem em péssimas condições. Pelos rankings internacionais, feitos por diferentes instituições de pesquisa, como a Save the Children, o Brasil tem péssimo desempenho no que se trata do bem estar materno. Enquanto Cuba aparece com a melhor posição da América Latina, em 33o. lugar, nosso país permanece na 78a. posição, atrás da Ucrânia (país mais pobre da Europa) e da África do Sul. Mas o que os rankings não mostram é que os melhores desempenhos, medidos por variáveis como saúde gestacional, mortalidade materna e infantil, renda, emprego, educação, dentre outras, foram construídos ao longo do tempo, principalmente por políticas públicas focadas no bem estar das mães, pais e crianças. A Suécia, por exemplo, que figura há muito tempo entre a primeira e a segunda posição em diferentes rankings como esse, construiu políticas sociais focadas nas famílias, sob influência de um feminismo forte e preocupado com as condições de vida das mães - casadas ou não. Uma das medidas mais antigas e importantes nesse país foi o financiamento de creches acessíveis e de qualidade para as crianças de famílias monoparentais. Sabendo que em 90% dessas famílias quem se responsabilizava pelo sustento e cuidado das crianças eram as mulheres, os movimentos feministas do início do século XX já cobravam medidas especiais para acolhê-las. Com o tempo e o aumento da consciência da desigualdade de gênero nas famílias e no mercado de trabalho, e com a preocupação crescente com os direitos das crianças, a Suécia desenvolveu um sistema de pré-natal totalmente baseado na prática das enfermeiras obstetras, doulas e casas de parto, concomitante a uma política de licença parental remunerada de até 13 meses, a ser desfrutada por homens e mulheres, e que, assim, contribui para uma das melhores taxas de amamentação da Europa. Mas, claro, é importante lembrar que nesse país as mulheres passaram a ter direito ao voto e representatividade política muito antes do que no Brasil.
Nossa situação, então, pode ser explicada pela dificuldade que as mães e as mulheres de maneira geral têm encontrado para entrar na arena política e colocar suas demandas por serviços de saúde e de acolhimento de bebês conectados com as recomendações internacionais acerca do bem estar materno. Em nosso país, parece ainda pairar uma ideia majoritária de que maternidade e paternidade são assuntos da vida privada, que nada tem a ver com movimentos sociais e políticas públicas. Isso é um imenso engano! Desde a redemocratização e a gradual emancipação das mulheres no mercado de trabalho, o tema dos direitos familiares tem crescido. O Estado tem reconhecido o papel fundamental das famílias e das comunidades locais para a saúde (vide Programa Saúde da Família, base do SUS) e para o desenvolvimento humano (vide Programa Bolsa Família, empoderando mulheres nos confins do Brasil principalmente porque são mães!). Ainda é pouco. Muito pouco! Ainda temos um déficit enorme de creches e escolas infantis, onde faltam cerca de dez milhões de vagas. Ainda temos um sistema de saúde suplementar totalmente desconexo das diretrizes mais importantes da saúde materno-infantil levadas a cabo com muita dificuldade pelo SUS. Ainda temos um congresso que não acredita na necessidade de uma licença parental (que inclua os homens - hoje os pais só têm direito a cinco dias corridos de licença).

Esse abismo de políticas para as famílias acaba reforçando também a reprodução da
desigualdade econômica e racial entre as mulheres. Sem garantia de vagas em boas creches, e sem licenças parentais razoáveis, a mão de obra de outras mães, pobres e geralmente negras e/ou migrantes, é explorada pelas famílias de classe média. Essas trabalhadoras, na maior parte dos casos, ainda não têm seus direitos trabalhistas respeitados e não encontram apoio público para o cuidado com suas próprias crianças.

Concordamos com as autoras: o empoderamento feminino não pode ser deslocado da luta feminista. Inclusive o empoderamento materno. Por que, então, ele é “café com leite”? Que tipo de julgamento estamos fazendo sobre as mães que se “empoderam” para viver a maternidade à sua maneira? Também concordamos com as autoras: não é possível falar em empoderamento feminino e ser contra a descriminalização do aborto. Essa é uma das maiores expressões de incoerência de quem defende o direito da mulher de escolher parir mas não defende a escolha de não ser mãe mesmo que tenha um óvulo fecundado. Não é possível falar em empoderamento feminino e achar que outra mulher não tem direito de dispor sobre o corpo dela. Não é possível falar em empoderamento feminino e ofender moralmente a mulher que está vestida sensualmente. Assim como não é possível falar em empoderamento feminino e desmerecer o empoderamento que culminou na fuga do sistema para parir dignamente, sem ser chamada de “gorda escandalosa” ou “égua parindo”.

As mulheres que têm feito jus ao seu direito de escolha e escolhido cesarianas têm tido seu direito respeitado. Quem não tem tido é justamente quem quer parir de cócoras, para usar apenas um exemplo. E quem é que vai defender essa aí? Ou, pior: quem é que vai defender aquela que, mesmo querendo isso, está tomando tapa e sendo xingada dentro de instituições de saúde, com o suposto aval da sociedade, que se nega a acolhê-las pelo não reconhecimento da violência sofrida?
Discordamos das autoras em mais um ponto. Nem sempre parir traz poder, biológico ou político.  Nem sempre traz satisfação e beleza. Nem sempre traz o poder de contestar a medicalização. Na verdade, quase nunca isso acontece no Brasil. E isso porque a grande maioria das mulheres está parindo em meio a xingamentos, barriga esmagada por um braço ou uma mutilação vaginal. Então, o “parir poderoso”, novamente tem sido para uma minoria. Então vamos atacar a minoria? E a defesa dos direitos das minorias, era só um discurso nosso?
Ao contrário do que parecem achar outras pessoas, não temos visto um culto exacerbado ao lugar da “mulher mãe” como sinônimo daquela que larga tudo para cuidar dos filhos em tempo integral. O que temos visto, isso sim, são centenas ou milhares de mulheres em luta constante para satisfazer simultaneamente seu próprio desejo de cuidar de suas crias de perto e o desejo de seu patrão de produzir ou o desejo do marido de pagar contas, ou o próprio desejo de ter uma vida profissional ativa. O que há é uma pluralidade de vozes e, entre tais vozes, há as das que querem cuidar dos filhos em período integral - embora esteja muito longe de ser majoritário. A grande maioria das mães contrata uma creche cara e vai ralar e são poucas as que continuam a tirar leite do peito para amamentar... Ou vamos cair no erro de achar que os poucos gritos de “VAMOS VOLTAR PARA CASA!” que ouvimos nas redes sociais representam a maioria das brasileiras? O mundo é mesmo machista pra cacete, como as autoras mencionaram, e ninguém está podendo fazer isso no Brasil sem arcar com uma longa lista de julgamentos e preconceitos, mesmo quem se sente “empoderada”. As mães que têm conseguido representam mesmo uma minoria. O que algumas feministas têm chamado de privilégio representa também uma conquista árdua, a partir da tomada de consciência e desejo de mudança sobre as condições gerais de maternagem em nosso país. De novo, atacaremos uma minoria porque a consideramos “privilegiada”?
Reconhecer não significa estereotipar
Uma das críticas de alguns grupos à inclusão da maternidade como questão feminista é o fato de que isso reforçaria o estereótipo de que as mulheres são as únicas responsáveis pelos cuidados com as crianças. Não querer reforçar a ideia comum de que os cuidados com a criança é algo natural na mulher é diferente de negar que não apenas a maternidade mas todas as funções de cuidados são executadas majoritariamente por mulheres. Ao afastar isso das frentes de debates feministas perdemos a oportunidade de não apenas desnaturalizar tais associações, mas também de exigir políticas públicas que liberem a mulher de tal condição. Como falar em cuidados compartilhados entre os pais se a licença paternidade é de apenas cinco dias, enquanto a licença maternidade é de quatro a seis meses? A não criação de vínculo parental pelo pai da mesma forma como acontece com a mãe, pela ausência de tempo dedicado, também traz nefastas consequências, como o acúmulo de tarefas pela mãe que também trabalha fora de casa. E esse é apenas um exemplo sobre como agregar questões de maternidade ao debate feminista, a fim de pleitear direitos como aumento da licença paternidade, resulta em melhoria de condições para as mulheres, em especial maior possibilidade de escolhas em suas vidas.
É importante lembrar, também, que muitas mulheres que estão em defesa de crianças cuidadas presencialmente estão é colocando o homem na jogada. Queremos crianças cuidadas não pela babá ou pelo professor em tempo integral? Então que venham os homens pra dentro de casa também! E, sim, estamos vendo isso acontecer, claro que em pequeníssimo grau, mas estamos vendo! Tem homem voltando pra casa para que a mulher, que ganha mais e está bem realizada em sua carreira, continue fora, sem que as crianças percam na qualidade do cuidado recebido. É maioria? Claro que não é. E de novo vamos atacar uma minoria?
O parto humanizado no Brasil, atualmente, está mesmo limitado a um recorte de mulheres da classe média. Fato. O que significa que todas as demais, financeiramente abaixo, estão atualmente fora dele – com exceções como as que têm acesso ao Sofia Feldman (MG – SUS) ou ao Elpídio de Almeida (PB – SUS), ou a parteiras tradicionais nos confins do Brasil e outras poucas. E, por conta disso, as mulheres da classe média que estão parindo dignamente são muitas vezes ridicularizadas ou chamadas de alienadas, umbiguistas, egotripistas, etc etc. E são essas mesmas mulheres da classe média que estão organizadas para lutar pelos direitos de todas por um parto sem violência ou mutilação. É uma das poucas vezes que o Brasil vê uma mobilização da classe média espirrando na assistência básica à saúde, no SUS, na legislação. Então, sim, é um privilégio da classe média, no momento, poder parir sem ser amarrada ou xingada ou sem tomar tapa. Mas essa classe média não está em berço esplêndido vangloriando-se de seu parto orgásmico - algumas nem sequer conseguiram parir como queriam e continuaram a engordar as estatísticas que caem muito bem nos bolsos do corporativsmo médico. Essas mulheres estão organizadas e estão se organizando – vide a ONG mencionada no início do texto e outros tantos exemplos.
Quanto de empoderamento feminino é preciso para sair do lugar de mãezinha e reivindicar direitos coletivos de saúde às mulheres, ainda que estejamos extrapolando a classe média brasileira tão viciada na inação? Muito. E o fato de serem mulheres mães empoderadas não desmerece nenhuma outra luta de empoderamento feminista.
O ponto é: mulher mãe não pode se intitular empoderada?
A que aborta pode, a que não quer ser mulher pode, a que é mulher embora não tenha nascido biologicamente uma pode. Mas as mães não. As mães vão ali praquele cantinho e tratem de ficar quietinhas. Quer dizer: na categoria “mães” vamos aglomerar toda a história de opressão vivida pelas mulheres e vamos mantê-la ali porque, afinal, as mães merecem, já que concordaram em abdicar de sua “real” condição de autonomia quando se tornaram mães - esse parece ser o pensamento de um grupo que não reconhece a maternidade como pauta feminista. E, paradoxalmente, o que temos visto é justamente um movimento de luta contra uma forma cruel (e invisível e velada, até negada, veja só! e, a despeito disso, altamente prevalente) de violência - a obstétrica, que mata e mutila - cujas bandeiras estão nas mãos de… mães! Qual é, companheiras? Não temos direitos mas podemos lutar?
Sim, o feminismo é muito mais, MAS MUITO MAIS MESMO. É autonomia para além de ser mãe.
Mas TAMBÉM para ser uma.
Nós escrevemos esse texto com o único e exclusivo objetivo de convidar outras feministas a olharem para a questão da maternidade e da violência obstétrica com olhos de luta, de empatia e de indignação, para que consigam enxergar em ambas as questões os mesmos séculos de opressão, preconceito, discriminação e violência que pairam sobre todas as mulheres. Não fazer isso é violentá-las, é violentar-nos.
Estamos ao lado de todas as demais lutas feministas. E esperamos que, em 2014, tenhamos mais lutadoras feministas ao nosso lado, ao invés de sermos atacadas apenas por sermos mulheres que criam crianças - crianças por um futuro onde haja verdadeira equidade..
Ligia Moreiras Sena
Ana Lucia Keunecke
Carolina Pombo
Raquel Marques

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Ideologia maternalista": projeto ideal ou inimigo da maternidade?

"No dia em que foi convidada para apresentar sua família na seção Família É Tudo, Karine Oleskovicz se sentiu reconhecida, quase como se estivesse conquistando o diploma de mãe em tempo integral. No dia em que falamos com ela, o marido, Dimas André Milcheski, tinha acabado de receber seu diploma de pós-doutorado, enquanto ela não tinha nenhum diploma de especialização para pendurar na parede. Agora, pode pendurar esta matéria."       

Foi com um misto de angústia e indignação que li a abertura de uma matéria intitulada "Babá só no fim de semana!", no site da Revista Pais & Filhos. A matéria destaca a felicidade e a grande conquista que representa para a mulher que abandonou sua vida profissional para ser "mãe em tempo integral", a liberdade de poder sair aos finais de semana graças à possibilidade de contratação de uma babá. Muitos pontos me incomodaram nessa matéria.

Em primeiro lugar, embora seja o ponto norteador desse relato, a babá em questão não tem nome e não se apresenta fotograficamente como a família. "Graças a ela", hoje a família sorri mais, aproveita mais a vida, mas ela continua na subordinação do anonimato escrito e visual. Ela ajuda a família, mas não faz parte dela. A invisibilidade da babá na matéria nos dá a clara indicação do real papel que ela ocupa na rotina da família-perfeita.


O retrato da família perfeita - sem espaço para a babá sem nome
Outro ponto interessante é a supervalorização do modelo de mãe perfeita - aquela que consegue se contrapor à suposta modernidade e opta por deixar sua vida profissional em segundo plano para cuidar dos filhos. Ela não tem os mesmos diplomas do marido, ressalta a matéria, mas o diploma de "mãe em tempo integral", ela pode pendurar na parede. E foi "longe da família e dos amigos" que ela optou por se expor como modelo de mãe. A matéria também exalta as conquistas profissionais do marido e as medalhas conquistadas pelo filho graças ao apoio da super mãe-modelo em tempo integral. Antes de continuar, quero deixar claro que essa não é uma crítica às mulheres que optam pela maternidade exclusiva, pois acredito que a maternidade é uma escolha e, como tal, deve ser vivida segundo o modo de vida que a própria mulher escolhe para si. 

O que me inquieta é essa supervalorização da mãe em tempo integral por parte da mídia. O que está por trás disso? No livro "O Conflito - a mulher e mãe", a filósofa Elisabeth Badinter* retoma os discursos que tentam tomar para si a subjetividade feminina, alegando o clichê de que o que a mulher quer, na verdade, é um homem para chamar de seu, uma casa, filhos e um casamento feliz. Badinter questiona o que ela chama de "ideologia maternalista", ou seja, o tão propalado "desejo feminino de ser mãe", um verniz discursivo que a todo momento tenta insistir à mulher que esse é o seu lugar.

"Que as mulheres sejam vítimas da ideologia da maternidade significa dizer que não questionam a escravização voluntária ao lar e à família. O algoz é o inocente bebê, ele mesmo construído como objeto da suposta "natureza maternal da mulher". Nesta ideologia, o amor materno é tratado como um dogma inquestionável da subjetividade daquela que não deseja mais nada além de ser a mãe perfeita. No maternalismo, o filho é visto como se não fosse um ser social ligado também ao pai, aos outros membros da família e da sociedade. Se a mãe deve ser infalível, necessariamente será culpada do que acontecer com seu filho caso ela não se comporte como impõe a regra. Claro que nesta ideologia não se leva em conta que existem tantas mulheres quantos desejos, que cada pessoa é um indivíduo singular". 

Indo mais além, eu diria que nós somos não apenas vítimas dessa "ideologia maternalista", mas conseguimos ir mais além e reproduzi-la, colocando-nos nós mesmas como protagonistas. Além de abraçar com fervor a máxima do modelo de mãe perfeita, absorvemos também os sentimentos que inevitavelmente percorrem aqueles que não conseguem se adequar ao modelo: a frustração.

Mães que optam por trabalhar fora, por seguir carreira acadêmica, que matriculam seu filho em tempo integral na escola ou na creche, que não têm tempo para fazer o dever de casa todos os dias, que vêm seu filho ficar doente e se culpam por tê-lo levado ao frio ou por não ter desligado o ventilador na hora certa, por não conseguir convencê-lo a comer na hora das refeições... qualquer acontecimento banal na rotina da criança é motivo para que a mãe se culpabilizar e transfira para si todo o sentimento de frustração. Frustração por não sentir o desejo de ser mãe ou por querer e não conseguir engravidar, frustração por não ser perfeita, frustração por não conseguir seguir ter um certificado de mãe em tempo integral, assim como a Karine Oleskovicz. A Karine é uma mãe tão perfeita que até saiu na Revista Pais & Filhos, olha só. 

O que está em jogo são as diversas tentativas que se colocam de mostrar à mulher que a maternidade é o seu caminho "natural" e que por mais que ela tenha projetos pessoais, sonhos, anseios, individualidade... a maternidade deve estar em primeiro lugar. "Essa ideologia, que prega simplesmente a volta a um modelo tradicional, pesa fortemente sobre o futuro das mulheres e suas escolhas", afirma a Elisabeth Badinter. 


Elisabeth Badinter
Pesa sobre a memória também. Se por um lado convivemos com a instituição religiosa tentando a todo momento guiar as rédeas da reprodução feminina, por outro temos o discurso biomédico historicamente interferindo sobre o corpo feminino e de que maneira deve se comportar um corpo reprodutivo. Se por um lado conquistamos o direito à dissociação entre sexo e reprodução, através dos contraceptivos, por outro, os discursos ideológicos que nos tentam empurrar o "instinto materno" como um fator natural e, portanto, impassível de discussão e desconstrução, são muito mais eficientes que qualquer outra ferramenta de poder. Ai daquela que ouse não querer ter filhos. Ai daquela que não coloque a maternidade como um diploma de tempo integral para pendurar na parede. Ai daquela que "a natureza secou" e decidiu buscar um tratamento de inseminação artificial. Ai daquela que abortar. Ai daquela que simplesmente queira ser mulher, além de mãe. A elas cabe o estigma.

No mais, cabe uma reflexão acerca das escolhas que fazemos para nós mesmas. Mais do que isso, "cabe perguntar se o apelo sempre renovado do instinto materno, e dos comportamentos que ele pressupõe, não é o pior inimigo da maternidade". 


*Sugestão de leitura: 
BADINTER, Elisabeth. O Conflito - A mulher e mãe. Rio de Janeiro: São Paulo: Editora Record, São Paulo, 2011.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O perigo do consumismo

Morar em condomínio é aguentar a criançada de férias batendo à sua porta várias vezes por dia, com um brinquedo na mão e perguntando pela sua filha o tempo todo. Se você morar no térreo (como eu), não dá nem pra escapar das carinhas nas janelas. No começo isso me incomodava, mas até que já me acostumei. Pelo menos eles brincam em casa e eu observo os diálogos e comportamentos. 

Mas uma coisa que realmente começou a me incomodar foi a persistência de um dos amiguinhos de Maria Joana, de cinco anos, em pedir os brinquedos dela. Quando ela abria a caixa pra espalhar os brinquedos, ele mal olhava as coisas e tudo que pegava, dizia: "Me dá isso" ou "O que é isso? Me dá". Não dava tempo nem de criar empatia com os brinquedos, a ponto de ele ver duas maracas e pedir uma, já que ela tinha duas. Quando eu expliquei pra ele o que era maraca e como se tocava (as duas juntas, claro)... "Me dê as duas, então". No primeiro dia, eu esperei a resposta de Maria pra perceber se era preciso interferir. Ela disse que não daria nada, que apenas emprestaria e então eles continuaram brincando. Tudo bem.

Mas, em condomínio tem de tudo - principalmente aquelas crianças que se acordam e saem passeando de apartamento em apartamento sem hora pra comer ou voltar pra casa. Hoje o mesmo menino apareceu novamente e deslanchou a pedir tudo pra ele. Eu então o chamei pra conversar e nos sentamos. Expliquei que Maria gostava dos brinquedos dela, assim como ele gostava dos dele e que não era legal chegar na casa das pessoas pedindo tudo. Uma coisa era se ele não tivesse brinquedos ou precisasse de algo, mas nada justifica uma criança de classe média entrar na casa das pessoas pedindo tudo como se não tivesse nada a não ser uma coisa chamada consumismo. Tentei explicar sobre o assunto e dizer que ele não precisa ter todas as coisas do mundo no quarto dele e que era muito melhor eles juntarem os brinquedos e aproveitar o que têm pra se divertirem, entre uma série de outras coisas.

Depois que eu falei tudo, ele simplesmente se levantou e disse que se Maria não desse nada, ele iria embora. Ela então começou a dar os brinquedos para ele. Era a hora de interferir mais incisivamente - tomei os brinquedos de volta e disse que amizade não era isso e que Maria Joana não precisava dar nada a ninguém pra ser amiga. E além do mais, não seria coisa de amigo ir embora simplesmente porque não ganhou nada e que ele precisava exercitar a parceria. Para minha surpresa, ele foi embora e Maria Joana ficou chorando e dizendo que a culpa era minha, porque eu não quis dar os brinquedos pra ele.

Esperei a crise de choro acabar e tentei explicar que ela não pode sair dando as coisas dela a todo mundo que faz chantagem, e tentei falar o que era isso pra que ela não caísse mais uma vez. E ressaltei o tempo todo que ela não pode construir relações de amizade baseada em objetos, sejam eles brinquedos ou qualquer outra coisa.

Situação resolvida, fiquei muito chateada. Fiquei chateada por ver uma criança de apenas cinco anos colocando o "ter" acima de tudo e com a capacidade de exercer uma descarada chantagem em cima de outra de três. Fico mais chateada em ouvir as pessoas dizerem que "isso é normal", porque "nessa idade eles só pensam em brinquedos". Não, tá errado! Por que será que "nessa idade eles só pensam em brinquedos", em ter, em colecionar todos os brinquedos no próprio quarto e se não for assim, cortam-se as relações?

Ninguém nasce querendo ter todos os brinquedos do mundo, essa é uma lógica que nós mesmos impomos ao nosso modo de vida e de se relacionar com o mundo, com as pessoas. Hoje quando fomos ao supermercado, Maria Joana olhou para uma barbie e disse: "Mãe, você compra pra mim no meu aniversário?". E para me livrar da pressão, eu disse que sim. Mas depois pensei no quanto agi errado. Com apenas três anos, ela já associa o aniversário, uma data de comemoração da vida, em um data específica para ganhar presentes, brinquedos, consumir. E sendo estimulada pela própria mãe, que apenas diz 'sim'.  

Em tempos onde a lógica do consumismo se faz cada vez mais forte e a felicidade "mora" na embalagem mais bonita da loja, é preciso observarmos os valores que nossas crianças estão aprendendo. Quando tentei conversar com o amiguinho de Maria Joana e lhe mostrar o quanto o "querer ter" estava se colocando acima do "querer estar com", sua reação foi muito perceptível: a lógica dele estava certa, qualquer outra estava errada e ele não queria saber, não queria ouvir. A mesma reação quando ouvem um 'não' numa loja. Não querem saber, não querem ouvir nada, se não for pra levar pra casa aquele brinquedo mais caro e mais atrativo visualmente.  

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mi cuerpo, tu cuerpo

Nosso corpo tem uma carga simbólica muito maior do que simplesmente a carne e o osso que já pesam sobre ele. Recebe o peso do julgamento moral, apontamentos sobre a roupa que o reveste ("pobre", "elegante", "brega", "curta demais" etc.), sobre a maneira como ele desliza pelas ruas - seja através dos pés ou não -, julgamentos punitivos que o colocam como extremamente sexualizado (ou assexuado), avaliações estéticas ("gostosa", "bizarro", "tronxa", "gorda" etc.), entre outros. A todo momento os nossos olhares são direcionados a julgar e avaliar os corpos alheios a partir de referenciais e padrões um tanto problemáticos. Mas é claro que não gostamos quando isso acontece conosco. Queremos ter o direito de circular tranquilamente pelas ruas, sem olhares opressores ou moralistas sobre nossos corpos.

Para alguns, o "estar à vontade" é um sentimento que só pode ser possível na própria casa. Mas nem por isso, nem mesmo no âmbito familiar e/ou individual, estamos livres do julgamento alheio acerca da conduta de nossos corpos. Recentemente vi pelo mundo livre da internet algumas fotos de uma família que costuma ficar nua em casa. Adultos e crianças, homens e mulheres, todos nus e se fotografando, registrando a interação constante entre corpos sem a intermediação da roupa. Os registros são da fotógrafa russa Anastasia Chernyavsky, que mora nos Estados Unidos com suas filhas. São imagens lindas, de uma beleza que envolve a poesia do corpo em sua naturalidade, sem preocupações sexuais.



Mesmo assim, com a divulgação das fotos, ela foi taxada por muitos de "indecente" e suas fotos foram bloqueadas pelo Facebook. Será mesmo que o nosso corpo já nasce com essa carga de "indecência"? Será que o corpo humano, por si só, apenas pela ausência de roupas, já carrega consigo uma conotação sexual? Por outro lado, será mesmo que essa sexualidade não estaria mais concentrada no olhar de quem o vê? Será que a "indecência" não está no julgamento de quem não consegue ver o corpo para além de um objeto manuseado pela libido humana? Não é mesmo possível que um corpo nu não seja algo natural?

De imediato, me identifiquei com as fotos por agir como ela. Eu e minha filha ficamos ficamos à vontade em casa. Desde cedo, procuro mostrar a ela um corpo humano sem tabus, sem olhares de padronizações estéticas. A referência de corpo feminino que ela tem é o de mulheres normais, o meu, o das avós, o das minhas amigas, e não os corpos "perfeitos" da mídia. Ela sabe como urinamos, sabe que nossas vaginas têm pelos, que sai leite do nosso peito e que a única coisa que diferencia nossos corpos do dela é o tempo de amadurecimento. Tamanho da bunda, peito duro ou caído, barriga reta ou dobrada, celulite... nada disso ganha importância no nosso dia a dia, porque o que mostramos a ela a respeito do corpo humano são referenciais de naturalização: a eliminação de dejetos, a função de cada órgão e a beleza particular de cada corpo que se apresenta. E é justamente a maneira como lidamos com o corpo nu que nos ajuda nesse processo de educação.

"Não diria que eu sou uma naturista, mas prefiro ficar nua. Para mim, não há nada de surpreendente ou de anormal nisso"











*Fotos copiadas do blog de Anastasia Chernyavsky.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Reutilizando o berço

É difícil perceber que eles estão crescendo, mas temos que encarar de frente. E é nos momentos rotineiros que percebemos isso. Um deles, sem dúvida, é o momento de trocar o berço pela cama. Já adiei demais, mas tenho que reconhecer que passou da hora. Ganhamos de presente aquele berço que vira cama, então nem a desculpa de não ter dinheiro pra comprar cama cola mais. Precisamos apenas de uma chave de fenda. Só isso. E mesmo assim sempre deixei pra depois essa operação demarcadora de tempo. Mas a hora chegou.

Pensando cá com meus botões, olhava para as grades e a parte de trás que teremos que tirar e pensava: "o que raios vou fazer com isso?" A priori elas não têm utilidade nenhuma, então não em cabimento doar pra alguém. Mas estão tão novinhas, também não tenho coragem de jogar no lixo. E, como sempre, o mundo sábio e amplo dos blogs me dá um caminhão de ideias. Depois dessa mega pesquisa, decidi finalmente fazer meu sofá - o da foto 10. 

Estante para revistas.

Mesinha de estudos.

Mesinha de estudos.

Porta toalhas.

Estante para os livros.


Porta-revistas.

Sapateira.

Sofá de jardim.

Sofá de jardim.

Sofá de jardim.

Estante de ateliê.


domingo, 5 de janeiro de 2014

Os homens e a família: mudanças culturais significativas

Ainda hoje, por incrível que pareça, acredita-se que muitas atribuições delegadas à mulher são relacionadas a "dons naturais" ou da "essência feminina". Muitos elementos entremeados nos papéis sociais de gênero são classificados como "coisa de homem" ou "coisa de mulher", sem levar em consideração as construções culturais imbrincadas em cada modo de vida ou em cada tipo de sociedade. Em países de cultura patriarcal e relações familiares hierárquicas como o Brasil, o lugar do homem e da mulher são muito bem separados e definidos na estrutura familiar. Enquanto a figura masculina representa a autoridade moral e financeira e o papel de mediador com o mundo externo, a autoridade feminina vincula-se à valorização da mãe como cuidadora do lar e da saúde e educação dos filhos. 

Esse modelo colocado de núcleo familiar ainda persiste em organizações sociais que chamamos de patriarcais - como no Brasil. Porém, longe de ser uma divisão de papeis com base em "dons naturais", essa organização familiar é uma construção cultural. Isso é facilmente perceptível quando nos deparamos com outros tipos de organização familiar em diferentes culturas e locais. Recentemente foi divulgada pelo Estado de São Paulo uma matéria que ilustra muito bem esse panorama comparativo.

Na Alemanha, cresce o percentual de homens que exigem condições de trabalho mais flexíveis para ter mais tempo para a família. Segundo a matéria, "A proporção de homens que trabalham meio período mais do que dobrou em dez anos, ao passo que a de mulheres cresceu em torno de 30%." Algo que parece impensável no Brasil, onde as mulheres tentam conciliar trabalho, estudo e família em uma jornada tripla, enquanto os homens permanecem nobremente em sua vida profissional. 


Mas um fator interessante destacado pela matéria é a centralidade da figura masculina como alvo das políticas públicas de família na Alemanha. Outra coisa impensável no Brasil. Quando se trata de políticas públicas para a família, pensa-se logo na mulher, principalmente com relação à reprodução e licença-maternidade. Licença-paternidade, então, nem se discute. E, pasmem, os homens alemães ainda acham pouco.

"Os homens avaliam as políticas corporativas para famílias de forma mais negativa do que as mulheres. Para 85% deles, as políticas das empresas nesse setor são mais direcionadas às colegas do sexo feminino. Foi o que revelou um estudo feito pela A.T. Kearney que será publicado este mês. "As empresas precisam agir. Necessitamos urgentemente de novos modelos de modo a reformular inteiramente o trabalho", disse Martin Sonnenschein, diretor da A.T. Kearney para a Europa Central."


Ou seja, se por um lado a concepção de família na Alemanha procura horizontalizar os papeis de gênero e diluir sua rígida divisão de tarefas, tudo isso está no âmbito de reivindicação dos homens. São eles que pedem por mudanças na legislação, são eles que pedem mais tempo com seus filhos e flexibilidade suficiente para conciliar trabalho, casa e família. Não são as mulheres que estão no seu pé, pedindo "ajuda" nas tarefas domésticas - pelo menos é o que revela o estudo da A. T. Kearney. 

No pacto de coalizão recentemente concluído pelo governo da Alemanha foi inserido, pela primeira vez na história do país, um capítulo que trata do papel dos "pais ativos" e um apelo no sentido de "melhores condições que permitam que pais e mães compartilhem as obrigações profissionais e familiares de modo equitativo".

Tudo isso acontece enquanto os programas da Fátima Bernardes e da Ana Maria Braga, as novelas da Globo os discursos familiares tentam te empurrar como a "devota rainha do lar" com o "dom natural" das habilidades de conciliar tudo.


Sugestões de leitura:

*ALMEIDA, Ângela Mendes de. Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.

*BADINTER, Elisabeth. O Conflito - A mulher e a mãe. Rio de Janeiro: São Paulo: Editora Record, 2011.

*BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado - o mito do amor materno. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.

*SARTI, Cynthia. A família como ordem moral. Cad. Pesq., São Paulo, n. 91, p. 46-53, nov. 1994.